domingo, 1 de fevereiro de 2009

RESENHA SOBRE O LIVRO CARTOGRAFIAS DOS ESTUDOS CULTURAIS

Ordenando os Estudos Culturais
Cartografias dos estudos culturais - uma versão latino-americanaAna Carolina D. Escosteguy. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

Cartografias dos Estudos Culturais, de Ana Carolina D. Escosteguy, merece ser lido por todos que investigam a sociedade e sua multiplicidade cultural. O livro é resultado de uma tese de doutorado e coloca em discussão a construção do conhecimento em Estudos Culturais na América Latina e suas ligações com a vertente britânica do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS).A obra organiza o conhecimento, não produz novos conhecimentos. Organiza as teorias, não produz novas teorias. Não fala de, e sim através de pesquisadores que autorizam um interessante percurso que culmina em indagações como "que desconstruções e reconstruções efetuamos sobre o empreendimento intelectual dos estudos culturais para iluminar nossa própria realidade (latino-americana)"?A autora elege três nomes que a acompanham na travessia: Stuart Hall, Jesus Martín-Barbero e Nestor García Canclini. Na busca da aproximação entre os pesquisadores, Ana Carolina Escosteguy privilegia a extensa obra de Hall e a constituição da perspectiva britânica dos Estudos Culturais; se detêm demoradamente nas pesquisas de Martín-Barbero, principalmente na publicação de 1987 "De los medios a las mediaciones'; e a contribuição de Canclini com os conceitos de hibridismo e a problemática do consumo levantada em 'Consumidores e Cidadãos' (1995).No primeiro capítulo a autora apresenta uma perspectiva histórica dos Estudos Culturais, definindo a abordagem como essencialmente britânica e preocupada com "temas vinculados às culturas populares e aos meios de comunicação de massa, e posteriormente, à temáticas relacionadas com as identidades, sejam elas sexuais, de classe, étnicas, geracionais, etc. (pg.29)". Ana Carolina percorre a produção do conhecimento da sociedade e da cultura latino-americana e a coloca como uma versão dos estudos culturais britânicos: "o que a Inglaterra experiencia, no final dos anos 50, a América Latina passa a vivenciar acentuadamente nos anos 70 (pg.41)".Os estudos culturais são organizados na Inglaterra, mas em outros países sempre houve uma efervescência teórica relacionada ao tema, sem entretanto se constituir como uma vertente visto que diferentes áreas se debruçam sobre a questão. Os estudos culturais britânicos direcionam seu foco para a atuação política da cultura, ao contrário da versão latino-americana que atua em um campo teórico difuso.O segundo capítulo de Cartografias dos Estudos Culturais mostra o domínio da autora nas teorias da comunicação e sua fácil movimentação diante da perspectiva dos cultural studies. Ana Carolina apresenta a questão da ideologia, seus desdobramentos marxistas, a articulação estruturalista da linguagem, o discurso dominante e a exploração dos estudos culturais mediante os processos de comunicação. Revela também que os fundadores da perspectiva se associaram a idéia de hegemonia colocada por Gramsci.A superação do conceito de ideologia de Althusser, usado por algum tempo pelos estudos culturais e pelos autores latino-americanos, converge numa discussão teórica intensa sobre o uso do aporte gramsciano de hegemonia, o que significa dizer que a cultura deve ser estudada mediante as relações sociais e de poder e não apenas no âmbito superestrutural.O direcionamento político dos estudos culturais fica mais claro no terceiro capítulo: o popular como opção política. "O popular como campo de abordagem é uma idéia que encontra tanto nas reflexões de Martín-Barbero e García Canclini quanto nas de Stuart Hall, assim como do espectro mais geral dos estudos culturais. Em todo esse conjunto repercute a influência gramsciana. Essa aproximação revela a existência de uma espécie de vasos comunicantes entre uma produção latino-americana e outra, originalmente, britânica (pg.112)". Neste fragmento, a autora revela que parte de dois olhares: um original e outro, uma versão. Embora o texto caminhe no sentido de mostrar as convergências entre a abordagem britânica e a latino-americana, fica evidente a supremacia do pensamento de Hall e dos questionamentos do CCCS. Fato notório é o popular como opção política. Quem aborda o popular é a vertente inglesa, para o estudo de caso latino-americano se força uma aproximação entre o popular e o hibridismo e a modernidade e a cultura popular. Hall trata a cultura popular como um processo articulador entre as relações de dominação e subordinação.A problemática plantada pela política cultural e os desdobramentos fora do Centro britânico de estudos culturais também foi contemplado por Ana Carolina através de Stuart Hall. Hall observa as 're-traduções' dos estudos culturais e admite que eles são "transformados uma vez que se começa a pensar o que é [por exemplo] a situação de Taiwan; o que nação significa lá e como a internacionalização e a nova economia global estão transformando aquela sociedade. Até que se penetre nos estudos culturais a partir dessas estruturas - não a partir de dentro mesmo dos estudos culturais, mas através dessas extremidades -, não se traduz realmente os estudos culturais, simplesmente os toma emprestado, renova-os, brinca de revesti-los. (pg.126)".A tradução e a renovação profetizada por Hall ganha forma quando o assunto é identidade. As identidades culturais foram contempladas pela autora no quarto e último capítulo de Cartografias dos Estudos Culturais. Ana Carolina coloca Stuart Hall na trajetória da identidade como diáspora, que enfatiza tanto o deslocamento espacial quanto o temporal. Entre a longa recuperação teórica do pensamento de Hall sobre as identidades culturais, fica marcado que para este autor a identidade "é um espaço onde um conjunto de novos discursos teóricos se interseccionam e onde um novo grupo de práticas culturais emerge. Trata-se de uma categoria política e culturalmente construída em que a diferença e a etnicidade são seus elementos constituintes; a experiência da diáspora se transforma em emblema do presente; a hibridação deixa sua marca e a fluidez da identidade torna-se ainda mais complexa pelo entrelaçamento de outras categorias socialmente construídas, além das de classe, raça, nação e gênero (pg.150)".O segundo nome que percorre o caminho das identidades culturais é Jesus Martín-Barbero que a coloca no plano do descentramento. Para Ana Carolina Escosteguy, Martín-Barbero vê os meios de comunicação como lugar de construção de identidades, além de ser um fenômeno marcado por modernidades e descontinuidades e de onde se origina uma idéia de mestiçagem. A leitura de Martín-Barbero, que parte da obra 'Dos meios às mediações', é povoada de questões que se desencontram durante o percurso teórico do autor. É difícil traçar um roteiro que indique com precisão o que Martín-Barbero entende por identidades na América-Latina. É indiscutível sua contribuição com conceitos como o de mediações, embora não haja uma reflexão maior a partir daí por parte do autor.Identidade como Hibridismo é a proposta liderada por García Canclini. Para Ana Carolina Escosteguy, a identidade em Canclini "é entendida enquanto uma narrativa que se constrói; um relato reconstruído incessantemente e não uma essência dada por uma vez e em forma definitiva (pg.179)". Chegar a essa conclusão exigiu da autora uma atenta leitura da obra de García Canclini. Como ela própria observou "ele expõe uma diversidade de questões para pensar e, além disso, a sua forma de apresentação não é linear (...) (pg.176)". Assim a autora responde as indagações assumidas no principio da obra e principalmente, articula uma vasta bibliografia ainda inacessível para a maioria dos pesquisadores brasileiros.Cartografias dos estudos culturais é uma obra que nos obriga a continuar pensando nos estudos culturais e que, principalmente, nos desafia a produzir mais conhecimento para que em uma próxima 'cartografia' sejam, os latino-americanos, originais e não somente uma versão.

Elisangela Machado Mortari é doutoranda em Comunicação e Cultura ECO/UFRJ.

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