quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

ENTREVISTA COM UM AUTOR CITADO PELO PROFESSOR NO 2º DIA DE AULA DA DISCIPLINA - ARMAND MATTELART

Os riscos da perda da originalidade diante
da generalização dos “estudos culturais”


Entrevista de Armand Mattelart
(Université Paris VIII , França)
a Edgard Rebouças
(Fac. Assoc. Espírito Santo – Faesa, Brasil)


"Dizer para os leitores da revista do Pensamento Comunicacional Latino Americano que Armand Mattelart é um dos mais respeitados estudiosos do campo da Comunicação seria uma ofensa à inteligência dos colegas. Utilizar estas poucas linhas para tentar introduzir ou explicar sua importância para a pesquisa na região seria um exercício de síntese por demais complicado. Mas alguns alertas talvez sejam necessários: primeiro, tentamos entrevistá-lo desde os números iniciais de nossa revista, mas invariavelmente havia um desencontro de datas, de local ou de disponibilidade de um entrevistador; até que foi possível que ele abrisse espaço em sua concorrida agenda para a PCLA durante um recente evento em Montreal.

Depois, o que o leitor da entrevista que se segue terá prazer de acompanhar é uma análise de quem conhece os problemas da Comunicação na América Latina como poucos, verá também uma crítica contundente ao uso que vem sendo dado o terno Cultural Studies, chegando ao que chama de um “verdadeiro imperialismo metodológico”. Armand Mattelart também convida os pesquisadores latino-americanos para um resgate às duas problemáticas mais marcantes dos estudos no continente: a comunicação popular e a internacionalização da mídia. Ao final, ele fala ainda da tecnicização dos curso de Comunicação, das dificuldades institucionais para a pesquisa na América Latina e de seus projetos futuros, já que reconhece estar mais distante de nós do que gostaria.

PCLA – Por muitos anos o senhor dedicou parte de seus estudos aos fenômenos da Comunicação na América Latina, sobretudo no Chile e no Brasil. Seus trabalhos são referência não só para pesquisadores latino-americanos, como de outros continentes, para que todos tenham uma visão sobre a região. O que pode nos dizer sobre como vê hoje a pesquisa em Comunicação na América Latina.

Armand Mattelart – Eu teria a mesma dificuldade para responder a esta sua pergunta caso me pedisse um panorama sobre a pesquisa em Comunicação na Europa. Para mim a América Latina é como o que (Ferdinand) Braudel escreveu na revista Annales, em 1948, da École des Annales Historiques, em um número dedicado à região: ele dizia que não há uma América Latina, ela falava de várias américas latinas… e esse é um número muito interessante, pois havia uma série de historiadores brasileiros, mexicanos etc. E ele mostrava no texto da introdução como a América Latina era formada pela diversidade. De minha parte, a primeira coisa que diria também é que a América Latina é um continente com muita diversidade, apesar de parecer um continente unido. E essa diversidade estava mais presente no anos 60, na época em que vimos as primeiras reações contra a hegemonia da escola funcionalista. Foi a época de (Antonio) Pasquali com sua base frankfurtiana, na Venezuela; foi (Eliseo) Verón na Argentina; aqueles que trabalhavam com cinema militante e rádio mineiras na Bolívia; no Peru também surgiram algumas alternativas; no Brasil, no início dos anos 60, era sobretudo Paulo Freire, que depois vai para o exílio no Chile… Enfim, o que quero dizer é que o panorama latino-americano é composto pela diversidade. Hoje, 25 ou 30 anos depois, é verdade que ainda existe uma diversidade. Mas agora, diferentemente dos anos 60, existem lógicas dominantes. É evidente que o que mudou não foi somente na lógica de integração da comunidade acadêmica latino-americana, mas devido ao fato de a comunidade acadêmica mundial estar em fase de estruturação. Isso trás algumas vantagens, mas também gera uma perda de especificidade, com risco para a história de algumas hipóteses que nasceram em um campo muito particular. Vemos isso com muita clareza na América Latina na forma como o mundo acadêmico anglo-saxão chegou ao ponto de tentar capitalizar as pesquisas que são chamadas dentro da abordagem do Cultural Studies, ao ponto de colocarem sob um mesmo guarda-chuvas até os estudos latino-americanos sobre a cultura. Sendo que o Cultural Studies nasceu em um ambiente muito específico, que é Birminghan. O problema da integração na comunidade internacional é que chegamos ao ponto, então, de haver um grande guarda-chuvas, e colocamos tudo lá em baixo… Isso é também uma forma de dominação. O que causa uma perda de memória, de originalidade da pesquisa, e acho que isso é um perigo.

PCLA – E o senhor acredita que aquela originalidade ainda pode ser resgatada? Por exemplo, como os trabalhos em comunicação comunitária, comunicação e cidadania, comunicação e educação…

Mattelart – Historicamente existem duas das grandes originalidades na pesquisa latino-americana. Primeiramente é a pesquisa em comunicação popular. A segunda, sobre a internacionalização. Na área da comunicação popular, englobam todas as iniciativas que queriam devolver a voz ao povo; seja no Chile, na Bolívia, na Colômbia, em todos os lados havia uma dinâmica bem forte. E acredito que toda a problemática ligada às campanhas de conscientização de Paulo Freire foram determinantes. Mas não havia somente Paulo Freire, havia também toda uma malha popular, e isso se dava em vários países latino-americanos. Isso foi evoluindo, inicialmente com o cinema, depois com o rádio… Este me parece um elemento fundamental. E você vai me perguntar o que ainda resta hoje dessa corrente. Pessoalmente eu acredito, e isso eu vi no início de 2002 em Porto Alegre, mais do que em 2001, que há uma preocupação popular de encontrar a ligação entre as ciências da Comunicação e as comunidades, o que é muito importante. Olhe a preocupação que está começando a se solidificar com o uso da informática pelas organizações populares, proposta essa que foi lançada pelo Ibase (www.ibase.br), com Herbert de Souza, Marcos Arruda e todos os outros. Hoje isso continua, a prova é que se mantém no centro da luta antiglobalização. E existem muitas outras organizações. Eu vejo esta como uma linha de estudos que é ainda muito forte, e isso dá um dos aspectos fundamentais dessa originalidade. Lógico que em alguns países ela se mostra mais forte do que em outros, o Brasil ocupa um lugar importante, pois lá ela é contínua. A problemática popular permanece essencial. Não diria a mesma coisa de todos os países latino-americanos. Algumas vezes vejo uma espécie de folga, uma recessão em relação a essa problemática. Acho que existem lógicas que vão contra esse tipo de problemática. E há coisas bem interessantes; não sei se você se lembra, em Santos, em 1997, (José) Marque de Melo fez uma análise da evolução da pesquisa no Brasil, e ele constatou que até o início dos anos 90 havia uma forte base de pesquisa em comunicação popular. E a partir dos anos 90, começava, progressivamente, a se voltar para a comunicação empresarial e tudo o mais; isso é totalmente oposto à dinâmica anterior. Mas isso acontece em todo o mundo, não somente na América Latina. Na França, o grande perigo é que as escolas de Comunicação venham a se tornar simplesmente escolas profissionalizantes, e que deixem de lado todo aquele questionamento crítico. Enfim, o que é importante é o resgate dessas interrogações sobre a comunicação popular e, sobretudo, a forma como ela está sendo incorporada e utilizada pelas redes sociais. Aí está um bom tema para ser observado, pois está se tornando comum na América Latina; basta ver o que vem sendo feito pela Alai (www.alainet.org), no Equador, criando uma rede tecnológica para atender a questões sociais. E eles se projetaram no espaço internacional, chegando ao ponto de estarem participando da organização da Cúpula da Sociedade da Informação, a ser realizado em dezembro de 2003, em Genebra, não só auxiliando, mas intervindo nos temas que serão discutidos.

PCLA – E a segunda linha, a dos estudos sobre a internacionalização da mídia?

Mattelart – A diversidade também gerou esse ponto de vista original na pesquisa. E os pesquisadores latino-americanos de hoje têm uma tendência a se esquecerem que a primeira região a levantar o problema da internacionalização foi América Latina; por meio de teorias que talvez sejam criticáveis hoje em dia, mas que continuam muito válidas para muitos aspectos, a teoria da dependência, por exemplo. Mas foi pioneira na construção de um campo de estudo sobre as relações internacionais em comunicação. Enquanto que na França foi preciso esperar até a segunda metade dos anos 80 para ver surgir alguns estudos sobre a internacionalização, na América Latina sempre existiram muitos: com a Nomic, as políticas culturais, as políticas de comunicação. Sem contar o número de eventos organizados pela Unesco (www.unesco.org), pela Intercom (www.intercom.org.br) ou por vários outros, que faziam com que o tema fosse muito discutido na América Latina. E seria muito importante retomar essa problemática. O que acontece é que os termos globalização e mundialização ficaram tão em voga que todo mundo pensa que trabalha com internacionalização. E isso é terrível! Eu acredito que há um campo específico, e o caminho traçado pelos latino-americanos, de reencontrar uma economia política da comunicação, é essencial.

PCLA – Como os estudos e as contribuições vindas da América Latina são vistos pelos pesquisadores europeus?

Mattelart – Existe um certo distanciamento. Lógico que há algumas exceções, como os colóquios feitos por pesquisadores franceses com o México, com o Brasil; mas isso é muito pouco, e fica muito restrito a um grupo pequeno. O que começa a acontecer é uma chamada de atenção para temas específicos, ligados quase a temas chaves, como por exemplo o hibridismo cultural. Quer dizer, há temas que circulam pelo mundo e que em um determinado momento chamam a atenção de alguém. Porque, pensando bem, as pesquisas latino-americanas que são mais conhecidas no exterior são aquelas que seguem um tipo de slogan. O exemplo que dei de Cultural Studies, e em seu interior a hibridização, a mediação, ou ainda (Renato) Ortiz com o popular nacional… são coisas que caminham. E eu arriscaria dizer que é uma lei do marketing. O grande perigo é ficarmos somente nisso, porque não somente as outras pesquisas acabam ficando escondidas, como também passamos a dar uma interpretação dessas pesquisas, de (Jesus Martin) Barbero, (Néstor Garcia) ou de Ortiz, de uma forma quase abençoada. Eu tenho uma interpretação completamente iconoclástica, mas te direi assim mesmo: é que me parece que está na forma como certos europeus lêem o que chamamos de “estudos culturais” – o termo foi muito generalizado. O problema está aí. Tenho a impressão de que a introdução dos estudos culturais latino-americanos na Europa tem servido muito para que… como se tivéssemos ido procurar na América Latina uma pesquisa que constitui um complemento da alma, e que não está isenta de um certo exotismo. E isso é muito perigoso! Porque isso renova o mito etnocêntrico do bom selvagem, é um aspecto redentor. Eu, particularmente, sou muito crítico quanto a isso. E como faço parte tanto da Europa como da América Latina, sinto isso muito mais do que os outros. Vejo que há uma espécie de exploração, um pouco menos na França, pois ela é mais pluralista neste ponto, mas na pesquisa anglo-saxã, onde os estudos culturais latino-americanos não são necessariamente aquilo o que está ligado à América Latina.

PCLA – Dessa forma, todas as outras abordagens metodológicas e teóricas ficam esquecidas…

Mattelart – Exato. Ninguém fala delas. Porque o que é tomado como instrumento de difusão de nossas pesquisas são determinadas revistas científicas, e quando vez ou outra sai um número especial sobre a América Latina só se fala dos estudos culturais, e não de um panorama do que acontece realmente. Vou dar um exemplo muito simples: você conhece bem o movimento zapatista, eu nunca vi em uma revista européia um artigo escrito por um latino-americano sobre o zapatismo (risos). Mas é um assunto que está diretamente ligado aos estudos culturais, só que os latino-americanos ainda não trataram desse tema com uma aproximação adequada. Quem poderia fazer isso? Não é Canclini. Ele está no México, mas como um exilado; ele pode dizer algumas coisa, mas não outras. Isso também faz parte da realidade da pesquisa na América Latina. O que nós esquecemos é que, apesar da construção de uma comunidade internacional de pesquisa, na circulação da pesquisa há sempre um jogo de forças intercultural. E minha preocupação é que a cada dia os pesquisadores queiram da América Latina somente os aspectos do que é feito em termos de estudos culturais, como se ela só tivesse isso para dar.

PCLA – Mas nós temos aqui um ponto que precisa ser melhor esclarecido. Pois nas recentes publicações em inglês, Cultural Studies se tornou um grande campo, onde quase todos os fenômenos ligados a Comunicação podem ser colocados em seu interior. O uso do termo difere do conceito que era pretendido pelos primeiros estudiosos de Birminghan.

Mattelart – Pois é. Isso é uma coisa inacreditável. Está tudo misturado. Você já deve ter visto um livro feito por um australiano chamado Simon During, que teve a segunda edição lançada recentemente. Eu estava em Nova York, dei uma folheada no livro e fiquei chocado.

PCLA – Sim, é um livro novo da Routledge, Cultural Studies Reader, uma coletânea enorme com textos que vão de Adorno a Lyotard, passando por Bourdieu, Roland Barthes, Foucault…

Mattelart – Esse mesmo. Segundo o que está lá, tudo é Cultural Studies. Isso é um verdadeiro imperialismo, todas as tradições que falam algo sobre cultura acabam virando Cultural Studies. Não podemos juntar tudo em uma só abordagem; pois eu faço estudos culturais, você também. A única coisa que eles nunca citam é a história. E aqueles estudos que começaram na Inglaterra sob uma dinâmica da história, com (Raymond) Williams, com (Edward P.) Thompson, ficaram para trás; a história para eles são as últimas duas décadas.

PCLA – Há pouco o senhor falou de uma preocupação sobre a tecnicização dos cursos de Comunicação na França, como o senhor vê este problema também na América Latina, em países que ainda enfrentam crises institucionais tão graves? O senhor acha que isso pode afetar a pesquisa em Comunicação na região?

Mattelart – Eu acredito que este é um problema muito sério. A pesquisa latino-americana está ligada também a situação desastrosa das universidades. O perigo é que as instituições públicas não possam mais permitir que seus professores continuem a fazer pesquisa. E isso já um problema que toca o volume de pesquisas, pois, antes de tudo, os pesquisadores precisam viver. E trabalhando em três universidades para ganhar a vida, a pesquisa vira algo secundário. Como me disse outro dia um colega nosso argentino, Guillermo Mastrini, que em um mês só pôde dedicar dois dias para suas pesquisas. Essa é a realidade, e você deve passar pela mesma situação no Brasil. Como isso, a condição do professor/pesquisador se deteriora. E essa situação piorou nos últimos 10 ou 15 anos. A qualidade de vida dos professores caiu. E a isso se junta a idéia da completa privatização do ensino superior. É verdade que há universidades privadas que se dedicam à pesquisa, a Unisinos, no Brasil, por exemplo, reúne muitos pesquisadores…

PCLA – São, sobretudo, as chamadas confessionais, ligadas às igrejas…

Mattelart – Isso mesmo, porque elas têm uma problemática. Mas temos que perguntar se elas têm ainda um dinâmica crítica, talvez individualmente, não sei. Em todo caso, o principal problema na América Latina é a morte, ou a atenuação, do serviço público, e o crescimento das pesquisas ligadas a comunicação organizacional. Acaba ficando tudo muito empírico.

PCLA - Já faz alguns anos que o senhor não direciona suas análises para o que se passa em nível local ou regional na América Latina. Por que esse distanciamento?

Mattelart - É, realmente, há algum tempo que eu não trabalho mais diretamente sobre a América Latina, mas por meio de meus estudos sobre a mundialização, a diversidade cultural e sobretudo sobre a sociedade da informação eu continuo ligado a problemáticas que englobam a América Latina. E mantenho minhas ligações com a América Latina por meio dos cursos que dou com frequência na região. É verdade que não trabalho mais sobre temas ligados diretamente à região, como pude fazer nos anos 80 com Carnaval das Imagens, com Michèlle Mattelart, ou ainda com outra obra que ainda não foi publicada no Brasil, e que foi importante, que poderia ter o título de América Latina e a encruzilhada telemática. Trata-se de uma abordagem sobre os primeiros passos para uma informatização da América Latina, que derivou de uma viagem que fizemos com Héctor Schmucler, financiada pelo Centro Canadense para o Desenvolvimento Internacional. Isso tudo faz com que eu tenha vínculos íntimos com alguns pesquisadores também.

PCLA – E quais são seus próximos projetos com a América Latina?

Mattelart – Acabo de terminar um livro de saiu recentemente no Brasil, História da Sociedade da Informação (publicado pela Loyola). E estou preparando um trabalho com um amigo sobre a evolução da escola dos Cultural Studies e a revolução que causou em âmbito internacional. Isso me preocupa, pois é um problema que não pode ser mitificado."

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