quinta-feira, 29 de janeiro de 2009
Encontro discute Imagem Contemporânea
Fonte:Texto reproduzido do Portal O Povo Online
PORQUÊ A BBC É PÚBLICA SEM O DINHEIRO DO ESTADO
ROGÉRIO SIMÕES, AMÉRICO MARTINS E JAMES PAINTER
“Uma entrevista diferente”. Foi assim que algumas pessoas classificaram a entrevista que o Fazendo Media publica nesta edição. Diferente por quê? Porque eu conversei com três pessoas ao mesmo tempo. O assunto é a British Broadcasting Corporation, ou BBC, uma senhora de 82 anos, com mais de 150 milhões de ouvintes. No início, estávamos eu e dois entrevistados: Américo Martins e Rogério Simões, que deram palestras na PUC-Rio nos dias 15 e 16 de março, durante um seminário sobre radiojornalismo, organizado pela PUC, pela CBN e pela BBC. Martins foi repórter e editor-assistente de Política da Folha e coordenador de Política do JB, em Brasília. Em Londres, colaborou com várias publicações, entre elas O Estadão, O Dia, Istoé e a revista Primeira Leitura. É pós-graduado em Economia pelo Birkbeck College e mestre em Jornalismo Internacional pela City University, de Londres. É o diretor da BBC Brasil. Já Simões, jornalista formado pela USP, trabalha na BBC Brasil desde março de 2001. Antes, atuou na Folha, onde foi editor de Opinião, correspondente em Londres e repórter especial, entre outras funções. Foi ainda subeditor de Internacional da revista Veja e redator-chefe do portal de futebol Pelé.Net. Trabalhou também no Estadão, na Folha da Tarde e na Gazeta Mercantil. Simões é o editor-chefe da BBC Brasil. O terceiro entrevistado, que veio direto de Londres e se atrasou no aeroporto por causa da “operação padrão” da Polícia Federal é James Painter. Britânico, muito reservado, chegando aos 60 anos, apresenta-se de forma humilde, envergonhado, desculpando-se muito pelo atraso e por não falar nosso idioma. “Yo no hablo Português. ¿Puedo hablar em Español?”. “Si. Puede”. E lá vamos nós, com uma entrevista a três, em Português e Espanhol. Ah, sim: Painter é o diretor da BBC América Latina.
Fazendo Media - Para quem já trabalhou em grandes veículos nacionais, quais as diferenças éticas entre as imprensas brasileira e britânica? Américo Martins - Olha, eu acho que a Grã-Bretanha tem a melhor imprensa do mundo, que são os jornais mais tradicionais. Eles são bastante éticos, no momento que assumem suas posturas políticas, sem enganar o público. Mas tem também a pior imprensa do mundo, que são os tablóides sensacionalistas que não respeitam a privacidade de ninguém. No entanto, esses tablóides sempre enfrentam problemas, porque temos quatro principais códigos de ética e a cobrança sobre os jornalistas é muito grande. A gente tem o código do sindicato; o de auto-regulamentação, que é o PCC [Press Companies Comission, Comissão das Companhias de Imprensa]; as normas internas de cada empresa e ainda a Ofcom, que é um órgão superior. Então, é muito difícil alguma atitude condenável ficar impune. Lá a gente tem um bom exemplo, que foi o jornal News Of The World, que tem tiragem superior a 4 milhões de exemplares aos domingos e publicou uma lista com nomes, endereços e fotos de condenados por pedofilia que já haviam cumprido pena. O jornal foi processado e hoje eu duvido que eles voltem a fazer coisa parecida. Aqui no Brasil a gente tem o caso da Escola Base, que rendeu uma indenização insignificante de 10 mil reais. Outra coisa é essa revista [pega o exemplar de Veja datado de 17 de março]. É proibido publicar fotos em que se identifique uma pessoa morta ou que esteja sofrendo. Se a Veja fosse publicada lá, seria processada pelo povo. Infelizmente aqui no Brasil não é assim.
FM - Então vocês devem ter uma apuração mais cuidadosa... Rogério Simões - Pois é. A BBC não é simplesmente uma TV, uma rádio ou uma página na Internet. Nossos serviços são usados como fontes seguras. Além disso, somos uma empresa pública, paga pelo povo. O objetivo é sempre levar as notícias às pessoas com rapidez, mas também com precisão. Nós recomendamos aos jornalistas: duvide sempre, nem que seja por alguns segundos, porque a dúvida é amiga da informação; além disso, pense no contexto e nas implicações da notícia que será dada. A gente, por exemplo, só dá uma notícia de agência, se puder ser confirmada e se, pelo menos, duas grandes agências derem. A gente pode se dar esse luxo, porque nós temos 250 correspondentes espalhados em 50 escritórios pelo mundo, além dos mais de 3 mil free lances que sempre trabalham com a gente e da equipe que trabalha em Londres. Então, a gente prioriza a informação do correspondente e, quando erramos, não temos receio de pedir desculpas.
FM - Aqui no Brasil, a BBC tem parceria com a rádio CBN. Existe troca entre vocês ou é uma relação unilateral? James Painter - Eu costumo dizer que a BBC é um monstro, devido ao nosso tamanho, mas é um monstro benigno. Somente no serviço de rádio, no qual eu trabalho há mais tempo, temos mais de 150 milhões de ouvintes por semana. As parcerias que nós fazemos são firmadas com o intuito de fortalecer os dois lados. Por isso, existe, sim, uma troca. Nós temos um efetivo pequeno aqui no Brasil. Se não fossem as parcerias, que, além da CBN, temos com portais de Internet e agências [de notícias], não conseguiríamos dar conta deste país.
FM - Qual o modelo de mídia brasileiro que mais se aproxima da BBC? AM - É a TV Cultura, de São Paulo. Isso porque eles são financiados por uma instituição, a Fundação Padre Anchieta. No entanto, somos muito diferentes.
FM - Como assim, diferentes? AM - A Fundação Padre Anchieta recebe dinheiro do governo [do estado de São Paulo] e repassa para a TV Cultura. Quando o governo não gosta de alguma, corta a verba e a Cultura fica em situação de miséria, como aconteceu há pouco tempo, o que é lamentável.
FM - E de onde vem o dinheiro da BBC? JP - Vem do bolso dos cidadãos. Somos uma empresa pública porque quem banca a BBC são os ingleses. Cada residência que possui TV paga, por ano, 116 libras [cerca de R$ 630] pela licença para assistir à televisão. Então, 96,1% de todo nosso financiamento vem desse pagamento. É algo em torno de US$ 4,5 bilhões por ano. Os outros 3,9% vêm de propagandas comerciais. Por causa disso, 54,6% de toda a nossa receita são destinados à TV. 15,1% financiam os correspondentes, 12% vão para a rádio, 10,3%, para o Online, 5,9% são para a rádio digital e os 10,3% que sobram são usados para cobrir gastos com transmissão."
Por Marcellus Rocha
quarta-feira, 28 de janeiro de 2009
MAIS INFORMAÇÕES SOBRE OS ESTUDOS CULTURAIS E A RELAÇÃO COM JÉSUS MARTIN BARBEIRO
REVISÃO SOBRE OS ESTUDOS CULTURAIS
“Os estudos culturais não configuram uma ‘disciplina’ mas uma área onde diferentes disciplinas interatuam, visando o estudo de aspectos culturais da sociedade.” (Hall et al. 1980: 7)
É um campo de estudos onde diversas disciplinas se interseccionam no estudo de aspectos culturais da sociedade contemporânea.
Entretanto, é preciso ressaltar que, na sua fase inicial, os fundadores desta área de pesquisa tentaram não propagar uma definição absoluta e rígida de sua proposta. Este campo de estudos surge, então, de forma organizada, através do Center for Contemporary Cultural Studies (CCCS), diante da alteração dos valores tradicionais da classe operária da Inglaterra do pós-guerra. Inspirado na sua pesquisa, As utilizações da cultura (1957), Richard Hoggart funda em 1964 o Centro. Este surge ligado ao English Department da Universidade de Birmingham, constituindo-se num centro de pesquisa de pós-graduação desta mesma instituição. As relações entre a cultura contemporânea e a sociedade, isto é, suas formas culturais, instituições e práticas culturais, assim como, suas relações com a sociedade e mudanças sociais, compõem seu eixo principal de pesquisa.
Na realidade, são três textos que surgiram nos final dos anos 50 que estabeleceram as bases dos estudos culturais: Richard Hoggart com The uses of literacy (1957), Raymond Williams com Culture and society (1958) e E. P. Thompson com The making of the english working-class (1963).
O primeiro é em parte autobiográfico e em parte história cultural do meio do século XX. O segundo constrói um histórico do conceito de cultura, culminando com a idéia de que a “cultura comum ou ordinária” pode ser vista como um modo de vida em condições de igualdade de existência. E o terceiro reconstrói uma parte da história da sociedade inglesa.
Especialmente, para este estudo interessa a pesquisa realizada por Hoggart na medida em que seu foco de atenção recai sobre materiais culturais, antes desprezados, da cultura popular e dos mass media, através de metodologia qualitativa.
Este trabalho inaugura o olhar de que no âmbito popular não existe apenas submissão mas, também, resistência o que, mais tarde, será recuperado pelos estudos de audiência dos meios massivos.
A contribuição teórica de Williams é fundamental para os estudos culturais a partir de Culture and society. Através de um olhar diferenciado sobre a história literária, ele mostra que a cultura é uma categoria-chave que conecta tanto a análise literária quanto a investigação social. Seu livro The long revolution (1962) avança na demonstração da intensidade do debate contemporâneo sobre o impacto cultural dos meios massivos, mostrando um certo pessimismo em relação à cultura popular e aos próprios media.
Essa mudança no entendimento de cultura fez possível o desenvolvimento dos estudos culturais. Em relação à contribuição de Thompson, pode-se dizer que este influencia o desenvolvimento da história social britânica. Para ambos, Williams e Thompson, cultura era uma rede vivida de práticas e relações que constituíam a vida cotidiana dentro da qual o papel do indivíduo estava em primeiro plano. Mas, de certa forma, Thompson resistia ao entendimento de cultura enquanto uma forma de vida global. No seu lugar, preferia entendê-la enquanto uma luta entre modos de vida diferentes.
Sobre a importante participação de Stuart Hall na formação dos cultural studies, avalia-se que este ao substituir Hoggart na direção do Centro, de 1969 a 1979, incentivou o desenvolvimento de estudos etnográficos, análises dos meios massivos e a investigação de práticas de resistência dentro de subculturas.
Cultura popular e mass media
Aproximando-se do vasto campo das práticas sociais e dos processos históricos, os cultural studies preocuparam-se, em primeira mão, com os produtos da cultura popular e dos mass media que expressavam os rumos da cultura contemporânea.
Este exerceu uma forte influência na formação dos cultural studies. A escolha por trabalhar etnograficamente deve-se ao fato de que o interesse incide nos valores e sentidos vividos. O estudo etnográfico acentua a importância nos modos pelos quais os atores sociais definem por eles próprios as condições em que vivem.
Althusser argumentava que existem várias forças determinantes – econômica, política e cultural – competindo e em conflito entre elas, compondo a complexa unidade – a sociedade. A questão da relação entre práticas culturais e outras práticas em formações sociais definidas, isto é, a relação do cultural com o econômico, político e instâncias ideológicas, pode ser considerada um segundo deslocamento importante na construção destes estudos.
Outra incorporação, extremamente cara a este campo, diz respeito ao conceito de ideologia, proposto por Althusser. Esta é vista enquanto “provedora de estruturas de entendimento através das quais os homens interpretam, dão sentido, experienciam e ‘vivem’ as condições materiais nas quais eles próprios se encontram”.
Nesta primeira etapa dos estudos culturais, ainda plenamente concentrada na Escola de Birmingham, a pesquisa estava delimitada, principalmente, nas seguintes áreas: as subculturas, as condutas desviantes, as sociabilidades operárias, a escola, a música e a linguagem.
Discordando do entendimento dos meios de comunicação de massa (MCM) como simples instrumentos de manipulação e controle da classe dirigente, os estudos culturais compreendem os produtos culturais como agentes da reprodução social, acentuando sua natureza complexa, dinâmica e ativa na construção da hegemonia.
Segundo Gramsci, não existe um confronto bipolar e rígido entre as diferentes culturas. Na prática o que acontece é um sutil jogo de intercâmbios entre elas. Elas não são vistas como exteriores entre si mas comportando cruzamentos, transações, intersecções. Em determinados momentos a cultura popular resiste e impugna a cultura hegemônica, em outros reproduz a concepção de mundo e de vida das classes hegemônicas.
Quanto às linhas de pesquisa, implementadas pelos estudos culturais, interessa-nos, sobretudo, aquela que se detém sobre o consumo da comunicação de massa enquanto lugar de negociação entre práticas comunicativas extremamente diferenciadas – esta será adiante comentada.
De forma sintética, pode-se entender o centro de Birmingham, da sua fundação ao início dos anos 80, como foco irradiador de uma plataforma teórica derivada de importações e adaptações de diversas teorias; como promotor de uma abertura a problemáticas antes desconsideradas como as relacionadas às culturas populares e aos meios de comunicação de massa.
No final dos setenta/início dos 80, as coisas começam a mudar. Desponta a influência de teóricos franceses como Michel De Certeau, Michel Foucault, Pierre Bourdieu, entre outros.
A atualidade
É interessante notar as diferenças entre os “primeiros” estudos culturais e os dos anos 90. No primeiro momento, havia uma forte relação com iniciativas políticas, pois existia uma intenção de compartilhar um projeto político. Se pretendia, também, uma relação com diversas disciplinas para a observação sistemática da cultura popular, assim como, com diversos movimentos sociais.
Já agora, há um relaxamento na vinculação política. O sentido de que se está analisando algo “novo”, também não existe mais. A relação cultura/ comunicação massiva e dentro desta, as problemáticas que enfocam as culturas populares e suas estratégias interpretativas, também se observam alterações no decorrer da trajetória dos estudos culturais.
No final dos anos 60, a temática da recepção e a densidade dos consumos mediáticos começam chamar a atenção dos pesquisadores de Birmingham. Este tipo de reflexão acentua-se a partir da divulgação do texto “Encoding and decoding in television discourse”, de Stuart Hall, publicado a primeira vez em 1973.
Através de categorias da semiologia articuladas à uma noção marxista de ideologia, Hall insiste na pluralidade, determinada socialmente, das modalidades de recepção dos programas televisivos.
Argumenta, também, que podem ser identificadas três posições hipotéticas de interpretação da mensagem televisiva: uma posição “dominante” ou “preferencial” quando o sentido da mensagem é decodificado segundo as referências da sua construção; uma posição “negociada” quando o sentido da mensagem entra “em negociação” com as condições particulares dos receptores; e uma posição de “oposição” quando o receptor entende a proposta dominante da mensagem mas a interpreta segundo uma estrutura de referência alternativa.
É dessa forma que se produz o encontro, durante os anos 70, com os estudos feministas. Estes propiciaram novos questionamentos em torno de questões referentes à identidade, pois introduziram novas variáveis na sua constituição, deixando-se de “ler os processos de construção da identidade unicamente através da cultura de classe e sua transmissão geracional. Mais tarde, acrescenta-se às questões de gênero, as que envolvem
raça e etnia.
Na década de 80, definem-se novas modalidades de análise dos meios de comunicação. Multiplicam-se os estudos de recepção dos meios massivos, especialmente, no que diz respeito aos programas televisivos. Também há um redirecionamento no que diz respeito aos protocolos de investigação. Estes passam a dar uma atenção crescente ao trabalho etnográfico.
Algumas das pesquisas empíricas dessa época apontavam para a importância do ambiente doméstico e das relações dentro da família na formação das leituras diferenciadas da TELEVISÃO.
Existem outros eixos importantes de serem avaliados na etapa presente dos estudos culturais. Entre eles estaria a discussão sobre a pós-modernidade ou a “nova era” (no original, new times) como é proposto por Hall, a globalização, a força das migrações e o papel do Estado-nação e da cultura nacional e suas repercussões sobre o processo de construção das identidades.
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS
Curso de Pós-Graduação em Comunicação – Mestrado
Estudos Culturais na América Latina
Dois investigadores marcam os estudos das relações entre comunicação e cultura. Jésus Martín-Barbero e Néstor García Canclini encarregaram-se de demonstrar um entendimento amplo e compartilhado das relações entre produção, distribuição e consumo do conjunto de bens simbólicos concebidos numa sociedade. Mas o interesse deste texto se dá na perspectiva que Canclini busca dar a partir do cruzamento de diferentes áreas do conhecimento. A sociologia, antropologia e estudos de comunicação como campo de conhecimentos que evidenciam a cultura como “híbrida”.
Esta visão autentica o papel dos meios de comunicação quando estes são colocados no mesmo patamar das demais manifestações sociais. Canclini afirma que isso é resultado de diversos fatores, especialmente da internacionalização econômica, do aumento do fluxo turístico e migratório, bem como da transnacionalização dos meios de comunicação.
Desta maneira, entender os problemas de comunicação como culturais recolocam as relações entre cultura e comunicação. Dá-se o rompimento de visões totalizantes sobre esses campos, redimensionando o papel do receptor como sujeito ativo. Canclini trabalha com o cenário latino-americano, e remete à compreensão de acabar com a dualidade constituída a partir de campos disciplinas segmentadas para entender um processo unido e ininterrupto, já que não enxerga mais a distinção entre as fronteiras do culto, massivo e popular.
*Este cruzamento o qual caracteriza o processo latino-americano e sua identidade cultural, Canclini chama de hibridização. (...) uma trama majoritariamente urbana, em que se dispõe de uma oferta simbólica heterogênea, renovada por uma constante interação do local com redes nacionais e transnacionais de comunicação.1
A explicação para este processo estaria na quebra e mescla das coleções (folclore, galerias, museus) que organizam sistemas culturais. O conceito de culturas híbridas é importante para compreender o que não cabe mais ao culto, popular ou massivo, ou seja, o que se produz atualmente é abarcado pelo processo de globalização e este não deixaria de fora as manifestações culturais.
O tradicional e o moderno já convivem em um mesmo cenário social. Para exemplificar este processo, Canclini faz uma análise de bens culturais onde consegue identificar os cruzamentos estabelecidos. “Qué buscan los pintores cuando citan en el miesmo cuadro imágenes precolombinas, coloniales y de la industria cultural, cuando las reelaboran usando computadoras y laser”? (CANCLINI, 1990, p. 14).
O autor percebe o fato de que a cultura já não diferencia as classes sócias a partir do capital e que houve flexibilização do vínculo entre diferentes estratos sociais, e isso, conforme Canclini, por causa de uma maior circulação de bens simbólicos. Estas possibilidades transclassistas aumentam o processo de hibridização e em conseqüência, surgem novas formas de identidade cultural. O argentino se utiliza do conceito de desterritorialização para caracterizar a perda de relação natural da cultura com a territorialidade geográfica e mesmo social, e adverte para o risco que os países têm de perder identidades.
O antropólogo fala que a sociabilidade híbrida das cidades leva o sujeito a participar de grupos cultos e populares, tradicionais e modernos. Canclini se faz mais instigador quando fala do caráter multicultural das cidades. Um pluralismo que é preciso concordar, se reduz quando pode-se observa a passagem das interações privadas às linguagens públicas, “as do rádio, da televisão e da publicidade urbana”. (CANCLINI, 1990, p 302). Mas como viver num mundo cheio de ambivalências geradas por oscilações entre o moderno e o tradicional, o culto e o popular?
Pensando o caso das cidades como ambiente, o simulacro passa a ser uma categoria central da cultura quando se vê que não mais se relativiza o autêntico, e que a hibridação se faz presente quando se compara monumentos históricos com luminosos publicitários de última geração.
O moderno se fragmenta e se mistura com o que não é e assim se afirma ao mesmo passo que é discutido. As hibridações demonstram que todas as culturas hoje são de fronteira. “Todas as artes se desenvolvem em relação com outras artes: o artesanato migra do campo para a cidade; os filmes, os vídeos e canções que narram os acontecimentos de um povo são intercambiados com outros”. (CANCLINI, 1987, p.348).
As culturas perdem a relação exclusiva com o território, mas desenvolvem conhecimento, se difundem e ganham em comunicação.
Para os meios de comunicação e às novas tecnologias há interesse nas tradições quando do reforço do contato entre emissores e receptores. Nos diversos recantos da América Latina, ainda há grupos étnicos reforçando sua identidade através de uma série de práticas. O folclore ainda existe, e funciona como símbolo de expressão de cada sujeito. A arte que circula por diferentes lugares, elitistas ou populares, se reformula periodicamente, numa reestruturação do saber. O processo de hibridização coloca no mesmo plano as diversas manifestações da cultura e rompe as fronteiras estabelecidas pelo modo de pensar da modernidade, em que o culto deveria estar nas galerias ou em grandes museus e o popular nas feiras e mercados.
Martín-Barbero, através de sua obra Dos Meios às Mediações, buscou a reconstituição do processo de massificação. Este novo olhar proposto por Martín-Barbero e outros autores latinos como Nestor Garcia Canclíni, dão razão a perspectiva de recolocar os problemas de comunicação noutro campo - o dos processos socioculturais. Eis então a proposta de deslocar o eixo do debate dos meios para as mediações, isto é, “para as articulações entre práticas de comunicação e movimentos sociais, para as diferentes temporalidades e para a pluralidade de matrizes culturais.” (MARTÌN-BARBERO, 2003, p. 270).
Martín-Barbero (2003) fala de “mestiçagem” ao caracterizar a identidade cultural latino-americana, e diz que estão se tornando pensáveis as formas e os sentidos que a vigência cultural das diferentes identidades vem adquirindo: o indígena no rural, o rural no urbano, o folclore no popular e o popular no massivo.
*A identidade latino-americana constitui-se resultante do convívio de tradições que ainda permanecem vivas com o processo de modernização. Este convívio de diferentes temporalidades e matrizes culturais permite que se pense em romper com a razão dualista que, de um lado defende o resgate das raízes e do outro acredita que o povo é um obstáculo para o desenvolvimento.
No “mapa noturno”, proposto pelo pesquisador, pode se esclarecer a questão das identidades ao considerar a importância das culturas regionais e locais, mas, sobretudo, da possibilidade dessas identidades serem construídas ou reafirmadas através dos meios de comunicação.
A identidade cultural pode ser vista como a contextualização do homem com seu meio. Ela desempenha a função de interação do sujeito com sua realidade em seu dia-a-dia. Funciona como mediadora dos processos de produção e de apropriação de bens culturais. Aqui, ainda pode-se afirmar que é essa mediação que dá garantia do significado da produção cultural e o sentido do consumo de bens simbólicos. Neste entrelaçar de aspectos é que a identidade cultural ganha relevância.
Em Dos meios às mediações, o pesquisador fala da televisão, inclusive citando o melodrama como um gênero mediador, constituindo-se “um terreno precioso para o estudo da não contemporaneidade e das mestiçagens de que estamos feitos”. (MARTÌN-BARBERO, 2003, p.316). "
Fonte:Texto reproduzido do Portal Unifra
Especializações inscrevem até dia 30
A Especialização em Audiovisual e Meios Eletrônicos é destinada a graduados em Comunicação, Artes e áreas afins. São ofertadas 44 vagas – quatro delas para servidores técnico-administrativos e docentes da UFC, que poderão receber bolsa de estudo.
O curso terá duração de três semestres letivos, funcionando às terças, quartas e quintas-feiras, de 19h às 22h. Nos casos das disciplinas ministradas por professores residentes em outros estados, as aulas ocorrerão em dias seguidos, de 18h às 22h de segunda a sexta-feira, e de 9h às 13h aos sábados.
Já a Especialização em Jornalismo Científico é destinada a graduados em Comunicação com habilitação em Jornalismo. São ofertadas 30 vagas – sendo três destinadas a servidores técnico-administrativos da UFC, que poderão concorrer a bolsa de estudo.O curso terá duração de 16 meses, sendo 12 meses com aulas, de segunda a quinta-feira, entre 19h e 21h30min, e os quatro meses restantes para a elaboração do trabalho de conclusão.
As inscrições devem ser feitas pessoalmente na Secretaria das Especializações (Av. da Universidade, 2762 – Benfica). O atendimento é nos dias úteis, de 19h às 21h30min. Os interessados devem estar munidos de da ficha de inscrição, preenchida e assinada; cópia da carteira de identidade e do CPF; cópia autenticada do diploma do curso de graduação ou equivalente; cópia autenticada do histórico escolar do curso de graduação ou equivalente e curriculum vitae com fotocópia da documentação comprobatória. Mais informações podem ser obtidas pelo telefone 3366.7712. "
Monografias, dissertações e teses receberão prêmios
Com apoio da Pró-Reitoria de Graduação, o concurso, envolvendo trabalhos de alunos recém-concludentes, receberá inscrições até o dia 23 de março, na coordenação das graduações e pós-graduações.Cada coordenação fará uma triagem e selecionará seis trabalhos (duas monografias, duas dissertações e duas teses), que devem ser encaminhadas ao CH até o dia 2 de abril. O regulamento do concurso está nas coordenações de cursos de graduação e de pós-graduação do Centro de Humanidades. Os trabalhos premiados, julgados por uma comissão formada por professores do CH, serão publicados. Mais informações e esclarecimentos podem ser obtidos com a Comissão Organizadora da VI Semana de Humanidades pelo telefone 3366.7600 ou pelo e-mail
6shumanidades@gmail.com ."
Fonte:Texto reproduzido do Portal da UFC
ABERTAS INSCRIÇÕES PARA O PROGRAMA DE BOLSAS DO PORTAL UOL
Fonte:Blog Gente de Mídia,com informações do Portal Uol
terça-feira, 27 de janeiro de 2009
Partilha e identidade
Lincoln se apresentando. Estava pensando em escrever alguma coisa para o blog.
Trouxe este texto.
Lembro-me de um parágrafo no livro de Berger & Luckmann que levantou uma primeira observação: a convivência, ou a intersubjetividade, traz possibilidades para a “solução de problemas principalmente por meio da linguagem, quando ligada à comunicação. Usei esse parágrafo como uma base para compreender o fato de que as partilhas, as conversas informais a respeito de assuntos tão simples quanto amizade, sexo e realização profissional são interessantes em razão do fortalecimento das identidades individuais e do maior entendimento da alteridade.
Talvez essas conclusões não sejam inéditas: o amadurecimento pessoal, intrínseco à associação grupal dos indivíduos, está também ligado ao aprimoramento do léxico e às situações comunicativas enquanto fatos de uma vida adulta.
Todavia, acredito que essas idéias seriam uma boa resposta, ao menos inicialmente, para o questionamento: para quê serve um estudo aprofundado em Comunicação? A justificativa vem sincera: porque não se pode alcançar uma maturidade, tanto pessoal quanto social, sem compreender a interação ocasionada no uso da linguagem. De uma forma sucinta, a comunicação é do interesse de todos os que queiram conhecer-se e apresentar-se ao outro, tendo em mente a conquista de relacionamentos que possibilitam a partilha de forma intensa, mesmo na brevidade do silêncio...
Penso que as palavras só nasceram para poderem jogar umas com as outras, que não sabem mesmo fazer outra coisa, e que, ao contrário do que se diz, não existem palavras vazias...
José Saramago
segunda-feira, 19 de janeiro de 2009
Estudos culturais
RESUMO
O texto foi escrito em resposta a um conjunto de perguntas elaboradas por pesquisadores da Universidade de Stanford. O questionário foi enviado a vários pesquisadores e intelectuais latino-americanos, entre os quais o autor. Procura-se problematizar a existência dos Estudos Culturais, tomada como uma realidade inconteste por aqueles que elaboraram o questionário, situando as ciências sociais no contexto da história dos países onde elas se desenvolvem. Nesse sentido, os Estudos Culturais nada têm de "universal", mas são fruto de uma conjuntura específica, sobretudo norte-americana, e dificilmente poderiam reproduzir-se no Brasil e na América Latina da mesma maneira.
Palavras-chave: Cultura; Mundialização; Ciências sociais; Língua inglesa; Multidisciplinaridade.
ABSTRACT
Text written in response to a cluster of questions elaborated by researchers belonging to Stanford University. The questionnaire was sent to several Latin-American researchers and intellectuals, including the author himself. The author tries to argue the existence of Cultural Studies, taken for granted from those who made the questionnaire, placing the social sciences in the historical context of the countries in which they have been developing. Cultural Studies are not at all something "universal", being the outcome of very specific circumstances, mainly North American, and hardly could be reproduced as such either in Brazil or in Latin America.
Keywords: Culture; Globalization; Social sciences; English language; Multidisciplinarity
A primeira vez que tomei consciência de que seria um praticante dos Estudos Culturais foi em Berlim, numa conferência organizada por Hermann Herlinghaus, em 1995. No ano seguinte, num seminário realizado em Stirling (Escócia), do qual Stuart Hall era um dos participantes, essa sensação se reforçou, pois, ao lado de meus amigos Nestor Garcia Canclini e Jesus Martin Barbero, lá me encontrava como representante de algo que nunca me tinha ocorrido. O questionário proposto pela Universidade de Stanford cita-me como um dos mais "sobresalientes" latino-americanistas dedicados aos Estudos Culturais, o que me dá grande satisfação. Entretanto, apesar dessa evidência, a imagem que tenho entre meus colegas brasileiros não se ajusta a ela. Para eles sou simplesmente sociólogo ou antropólogo, embora meus escritos, lidos e apreciados em áreas distintas, como crítica literária, arquitetura, geografia, comunicação, se encaixem mal nas fronteiras disciplinares existentes. Pessoalmente não tenho nenhuma angústia identitária, mesmo em tempos de globalização, quando muitos estão assombrados pelo afã insensato de decifrar o seu "eu" maior. Sinceramente creio que não deveríamos ter nenhuma carteira de identidade, ela diz pouco sobre nossa individualidade, mas uma "carteira de diferenças", rica, complexa, indefinida, reveladora da diversidade de nossos itinerários ao longo da vida, fechando-se somente com a nossa própria morte. Mas, se as representações sobre meu trabalho são distintas "fora" e "dentro" do Brasil, é provável que os lugares nos quais elas são lapidadas digam alguma coisa sobre a atividade intelectual que desenvolvemos e pressupomos como dadas, objetivamente imutáveis. Sou incapaz de responder por completo às perguntas elaboradas pela Universidade de Stanford. Muitas das questões abordadas são para mim relativamente distantes, talvez por ser brasileiro, latino-americano, o que de certa maneira me afasta da lógica do campo universitário norte-americano. Considerarei portanto os pontos que me parecem os mais relevantes, e talvez, com o olhar um tanto estrangeiro, venha a contribuir com o debate em andamento.
Os Estudos Culturais não existem no Brasil como área disciplinar. Claro, o interesse pelo que é produzido, seja na Inglaterra, via Escola de Birmingham, seja nos Estados Unidos, como estudos literários, pós-modernidade, globalização, está presente entre nós. Mas os termos da discussão são outros. Não sei se eles constituirão no futuro uma especialização acadêmica nem saberia dizer se isso seria realmente desejável. A verdade é que a institucionalização do conhecimento na esfera das humanidades se encontra mais ou menos definida, constituída por disciplinas e algumas atividades específicas, tais como comunicação e artes. Mesmo nos institutos e departamentos de Letras, as tradicionais divisões de ensino e pesquisa parecem vigorar sem maiores constrangimentos. Isso estabelece de imediato um "dentro" e um "fora", pois as perguntas sobre a possível relação entre "estudos culturais" e "estudos literários", o destino dos "estudos culturais", sua politização ou não, nada têm de universal. Eles seguem o ritmo das mudanças ocorridas nas universidades norte-americanas, mas dificilmente exprimem a realidade brasileira e, eu acrescentaria, latino-americana. Na introdução de meu livro O próximo e o distante: Japão e modernidade-mundo (Brasiliense, 2000), digo que a noção de "estudos japoneses", conhecida como japonologia, somente tem sentido quando apreciada do exterior. Os japonólogos são pesquisadores, preferencialmente oriundos da Europa e dos Estados Unidos, cuja intenção é compreender a realidade desse país determinado. Passa-se o mesmo com os brasilianistas e latino-americanistas. São pessoas que se encontram "fora" do Brasil e da América Latina, trabalhando geralmente em instituições norte-americanas ou européias. Mas nenhum brasileiro ou latino-americano se identificaria como um brasilianista ou um latino-americanista. Isso somente ocorre quando eles migram para uma instituição estrangeira, inserindo-se em outro mercado acadêmico. Aí, nesse momento, sua identidade profissional irá se alterar. Por isso não há japonólogos no Japão e latino-americanistas na América Latina, mas sociólogos, economistas, historiadores etc. Quando vista internamente, a realidade das áreas geográficas tem pouca consistência (inclusive teórica), vivendo mais dos influxos externos. Embora a situação não seja exatamente a mesma (os Estudos Culturais não coincidem com uma área geográfica qualquer), algo semelhante ocorre, pois o conhecimento vem marcado pela história dos lugares nos quais os Estudos Culturais são produzidos. Teriam eles uma unidade disciplinar? Configurariam uma área específica do conhecimento? A resposta pode eventualmente ser positiva quando os consideramos no contexto das universidades norte-americanas, mas negativa, ou no mínimo ambígua, quando nos voltamos para a América Latina. No que toca ao Brasil, parece-me que a penetração dos Estudos Culturais se faz pelas bordas, ou seja, para utilizar uma expressão de Bourdieu, na periferia do campo hierarquizado das ciências sociais, particularmente nas escolas de comunicação (o que certamente demonstra o conservantismo de disciplinas como sociologia, antropologia, literatura). Entretanto, mesmo assim, nenhuma delas se propõe a modificar o seu estatuto institucional. Os textos são lidos e os autores cultivados, sem que o conceito de "comunicação", como área específica do conhecimento ou, se quiserem, de agregação de interesses, encontre-se ameaçado.
Os Estudos Culturais caracterizam-se por sua dimensão multidisciplinar, a quebra das fronteiras tradicionalmente estabelecidas nos departamentos e nas universidades. Esse é para mim um aspecto altamente positivo no processo de renovação das ciências sociais. Não há dúvida de que o movimento de institucionalização do conhecimento durante o século XX caminhou muitas vezes para uma espécie de fordismo intelectual, no qual as especialidades, as subdivisões disciplinares e temáticas (sociologia rural, antropologia da família, partidos políticos etc.), alimentadas sobretudo nos momentos de celebração ritual, os grandes congressos acadêmicos, implicaram a preponderância de um saber fragmentado em relação a uma visão mais "globalizadora", "totalizadora", dos fenômenos sociais (lembro que para Marcel Mauss a categoria "totalidade" era fundamental na construção do objeto sociológico). Não se pode dizer que o processo de especialização tenha sido inteiramente negativo; de alguma maneira ele possibilitou a análise mais detalhada de certos "eventos", mas permanece a impressão de que a fragmentação existente pouco favorece o aprimoramento do conhecimento, vinculando-se mais aos interesses dos grupos profissionais que disputam verbas de pesquisa e posições de autoridade no campo intelectual. Entretanto, não se deve considerar a importância da multidisciplinaridade como algo idêntico ao "fim das fronteiras". Ou cairemos na obviedade do senso comum que tem insistentemente alardeado, já no ocaso do século XX, o "fim" das ideologias, do espaço, do trabalho, da história. Seria, nesse caso, substituir uma insuficiência real por um falso problema. As fronteiras são necessárias para a existência de um saber autônomo, independentemente das injunções externas (religião, política, provincianismo local, senso comum). A multidisciplinaridade não é pois um valor em si, mas um valor relacional (isto é, estabelece-se em relação às "verdades" disciplinares), e é preciso portanto vinculá-la a uma questão anterior: em que medida ela favorece ou não uma realização mais adequada do próprio pensamento. Se os Estudos Culturais propõem uma solução multidisciplinar, não é menos certo que outras alternativas podem também ser exploradas, por exemplo a transdisciplinaridade. Nesse caso, os horizontes disciplinares surgem não como um entrave a ser abolido, mas como ponto de partida para uma "viagem" entre saberes compartimentados.
O tema das fronteiras pode ser ainda explorado por outro viés. A comparação com os Estados Unidos é sugestiva. Desde a década de 1920, com a Escola de Chicago, a sociologia conhece nos Estados Unidos um intenso movimento de institucionalização. Introduction to the science of sociology, de Park e Burguess, considerado a pequena bíblia dos sociólogos daquela cidade, foi publicado em 1921. A expansão do ensino universitário, com a criação de departamentos e institutos de pesquisa, irá multiplicar os nichos institucionais incentivando o florescimento das diferentes áreas acadêmicas. Já nos anos de 1940 diversas escolas de pensamento, como funcionalismo e culturalismo, apresentam-se como referências teóricas importantes no campo intelectual norte-americano. No Brasil, para utilizar um termo caro à intelectualidade latino-americana, a institucionalização das ciências sociais é "tardia". A "escola paulista" de sociologia, personificada na figura de Florestan Fernandes, data dos anos de 1950. Nesse momento, outras disciplinas, como a antropologia, certamente existiam, mas apenas de forma incipiente, desenvolvendo-se em pontos distantes e desconectados do país e praticadas por um número bastante reduzido de pessoas (a ciência política não existia ainda como especialização). Não se pode esquecer que o desenvolvimento de uma rede universitária de ensino, até a reforma de 1968, era também limitado. Na verdade, a institucionalização das ciências sociais se consolida nos anos de 1970 e 1980 com a emergência de um sistema nacional de pós-graduação (mestrado e doutorado) apoiado pelas agências financiadoras federais (Capes, CNPq) e estaduais (Fapesp), panorama que torna o Brasil hoje um país relativamente "privilegiado" comparado a seus vizinhos, pois em nenhum deles houve um desenvolvimento tão intenso das redes universitárias de pesquisa. Contrariamente às ditaduras chilena, argentina, uruguaia, os militares brasileiros foram "modernizadores", isto é, impulsionaram o crescimento econômico nos marcos de uma política autoritária, o que teve conseqüências importantes na reestruturação da universidade. Quero dizer com isso que, num contexto de institucionalização restringido, as fronteiras disciplinares nunca conseguiram se impor com a mesma força e rigidez que nos Estados Unidos. Não houve tempo nem condições materiais para que isso acontecesse. Sem dúvida elas existem nas universidades e nos centros de pesquisa, mas são mais porosas, fluidas, permitindo uma interação maior entre os praticantes das ciências sociais. As passagens da filosofia à sociologia, da ciência política à história, da antropologia à comunicação, da sociologia à literatura, não são casos de excepcionalidade, mas constituem quase que uma regra do campo universitário. Talvez por isso o ensaio, como forma de apreensão da realidade, sobretudo na tradição latino-americana hispânica, tenha sobrevivido ao processo de formalização disciplinar. Pois é de sua natureza desrespeitar a formalidade dos limites estabelecidos.
A análise da cultura constituiria um novo paradigma sistêmico? Pessoalmente não estou convencido de que as ciências sociais operem com paradigmas, no sentido que Kuhn atribui ao termo. Mesmo tomando o conceito de uma maneira mais alusiva e abrangente, como sinônimo de "referência teórica", minhas dúvidas persistem. Lembro que alguns anos atrás um debate semelhante ocorreu em relação à área de comunicação. Existiria uma "teoria da informação" distinta das outras esferas de conhecimento? Seriam as escolas de comunicação o lugar privilegiado desse "sistema epistemológico"? O resultado dessa polêmica, hoje apagada pelo tempo, não foi encorajador. Gostaria, porém, de retomar a questão, se eu a compreendi bem, dando-lhe outra formulação: atualmente, a problemática da cultura encerra algo de qualitativamente diferente em relação às perspectivas trabalhadas antes? Creio que sim. A tradição das ciências sociais, nos seus diversos ramos disciplinares, confinava a esfera da cultura a certos gêneros específicos: na literatura, a discussão estética; na antropologia, a compreensão das sociedades indígenas, do folclore e da cultura popular; na história, a reflexão sobre as civilizações (hoje revigorada com a emergência da globalização). Tanto na Europa como nos Estados Unidos, a sociologia, quando se ocupava do tema, praticamente o restringia à esfera da Kultur. A literatura e a arte desfrutavam assim de um estatuto privilegiado. O debate sobre o surgimento da cultura de massa nos Estados Unidos (anos de 1940 e 1950) tomava o universo da arte como referência obrigatória, seja para criticá-la como "elitista" (os autores liberais vinculados à idéia de democracia de massa e ao mercado), seja para valorizá-la, como os frankfurtianos, como o derradeiro refúgio da liberdade espiritual. Pode-se ainda dizer que a análise dos fenômenos culturais desfrutavam de um prestígio "menor" no campo intelectual. Outros temas, como partidos políticos, Estado, modernização, industrialização, urbanização, eram vistos como "mais importantes" do que os estudos referentes à cultura popular, às religiões etc. Certo, a esfera da "alta cultura" permanecia ilesa, pois era considerada algo à parte, o que garantia assim sua aura solitária. Mesmo na América Latina, guardadas as devidas proporções, esse movimento se reproduz. Contrariamente à Europa e aos Estados Unidos, a temática cultural, associada ao dilema da identidade nacional, foi uma preocupação permanente da intelectualidade. Nesse sentido, as análises empreendidas transbordaram os limites estabelecidos pelas ciências sociais européia e norte-americana. A constituição da nação implicava uma reflexão diferenciada. No entanto, na virada dos anos de 1960-1970, com o processo de institucionalização das disciplinas, temas como desenvolvimento, modernização, transição democrática, dependência terão um apelo muito maior entre os cientistas sociais, e um público mais amplo. É possível dizer que a tradição marxista, talvez de forma inconsciente, tenha nisso desempenhado certo papel, pois a "superestrutura", como reflexo ou não da "infra-estrutura", designava às manifestações culturais uma posição secundária. De qualquer maneira, com exceção da antropologia culturalista norte-americana (confinada aos estudos das sociedades indígenas, camponesa, e à aculturação) e a discussão da cultura nacional na América Latina, a esfera da cultura era vista não em sua totalidade, mas recortada segundo temas e disciplinas. Os estudos literários pouco tinham a ver com as análises sociológicas, a antropologia dificilmente dialogava com a dimensão "moderna" da chamada "cultura de massa", e assim por diante. Atualmente, em contraposição a essa tendência de compartimentalização do conhecimento, o universo da cultura passou a ser percebido como uma encruzilhada de intenções diversas, como se constituísse um espaço de convergência de movimentos e ritmos diferenciados: economia, relações sociais, tecnologia etc. Não creio que venha a existir, como se pensou no passado, uma "Teoria da Cultura" (intenção um tanto ingênua dos antropólogos culturalistas), mas estou convencido de que dificilmente esse espaço de convergência pode ser circunscrito às fronteiras canônicas das disciplinas existentes.
Outro aspecto diz respeito à problemática do poder. Tradicionalmente as ciências sociais tenderam a identificá-lo com a política. Há evidentemente exceções que confirmam a regra, por exemplo a sociologia da religião de Max Weber. Não obstante, o movimento dominante no pensamento sociológico (no sentido amplo do termo) foi considerá-lo algo preferencialmente vinculado ao universo da política. Por isso temas como Estado, governo, partidos, sindicatos e movimentos sociais tornaram-se hegemônicos entre os cientistas sociais. A cultura ficava um tanto à margem disso tudo. Novamente, diante desse quadro, a América Latina pode ser vista de forma distinta, mas é importante dimensionar as coisas para não cairmos em mal-entendidos. O dilema da identidade nacional levou a intelectualidade latino-americana a compreender o universo cultural (cultura nacional, cultura popular, imperialismo e colonialismo cultural) como algo intrinsecamente vinculado às questões políticas. Discutir "cultura" de uma certa forma era discutir política. O tema da identidade encerrava os dilemas e as esperanças relativos à construção nacional. Entretanto, isso posto, é importante qualificar o contexto no qual o debate era travado e apontar para as mudanças advindas desde então. Primeiro, a emergência de uma indústria cultural, particularmente num país como o Brasil, redefiniu a noção de cultura popular despolitizando a discussão anterior (tratei de maneira exaustiva esse aspecto em meu livro A moderna tradição brasileira [Brasiliense, 1988]). Segundo, o Estado-nação era o pressuposto básico da argumentação desenvolvida. Terceiro, o movimento de institucionalização das ciências sociais, mesmo restringido com a especialização das disciplinas, incentivou a separação entre compreensão da realidade e atuação política. As transformações recentes deslocam ainda a centralidade do Estado-nação, redefinindo a situação na qual são produzidas as ciências sociais. Muito do que se define por "crise política" associa-se às restrições impostas à sua atuação. Com o processo de globalização ele torna-se debilitado, cindindo o elo postulado anteriormente entre identidade nacional e luta política. O deslocamento do debate, da identidade nacional para as identidades particulares (étnicas, de gênero, regionais), reflete essa nova tendência. Mesmo no quadro dos antigos países "centrais", pode-se dizer que também as instâncias tradicionais da política perdem legitimidade ao se definirem quase que exclusivamente em termos das fronteiras nacionais (a discussão sobre uma possível "sociedade civil mundial" é um sintoma disso). Outra mudança, a meu ver profunda, diz respeito a como a esfera da cultura passa a ser percebida. Na América Latina, como apontei antes, ela era vista como um espaço de ação política, mas não necessariamente, como entendemos hoje, um lugar de poder. Ou seja, as contradições existentes no seio das manifestações culturais eram imediatamente traduzidas em análises e propostas encampadas pelas instituições tradicionalmente consagradas ao "fazer política": governo, partidos, sindicatos, movimentos sociais. Creio que se torna cada vez mais clara a distinção entre poder e política, pois o poder, como algo imanente às sociedades, às relações sociais, nem sempre se atualiza como política. Entre as manifestações culturais e as instâncias propriamente políticas existem portanto mediações. Sem elas corre-se o risco de indevidamente "politizar" a compreensão analítica, deixando-se de lado aspectos importantes, às vezes definitivos, da constituição de alguns fenômenos sociais (estética, religião etc.). De qualquer maneira, conceber a esfera da cultura como um lugar de poder significa dizer que a produção e a reprodução da sociedade passam necessariamente por sua compreensão (o que é distinto da idéia de "conscientização", muito em voga na América Latina nos anos de 1950 e 1960). Dimensão que se acentua no contexto da globalização.
Renato Ortiz é professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp e autor, entre outros, de Cultura e modernidade (Brasiliense, 1991), Mundialização e cultura (Brasiliense, 1994), Um outro território: ensaios sobre a mundialização (Olho d'Água, 1996), O próximo e o distante: Japão e modernidade-mundo (Brasiliense, 2000) e Ciências Sociais e trabalho intelectual (Olho d'Água, 2002).
Fonte:Texto reproduzido do site Tempo Social
domingo, 18 de janeiro de 2009
TRECHOS DA ENTREVISTA DE JESUS MARTÍN BARBERO AO RODA VIVA
"Comunicólogo espanhol relaciona o papel dos meios de comunicação de massa com os processos de formação de identidades sociais
Paulo Markun: Boa noite! Os meios de comunicação de massa, principalmente a publicidade e a televisão, empurram os latino-americanos para a homogeneização total que interessa ao mercado global. Mas o que os meios de comunicação comunicam transforma-se pela mediação realizada nas favelas e nos bairros da periferia; nos clubes e nas organizações comunitárias; na família e nos conjuntos musicais, entre tantas outras instâncias. Essa transformação permanente é o foco do convidado desta noite, do Roda Viva, o professor e pesquisador espanhol Jesus Martín-Barbero, um dos mais importantes estudiosos de comunicação na América Latina.
Dos meios às mediações foi publicado na Colômbia em 1985. O livro mescla, antropologia, sociologia, estudo de comunicação e análise política e é a síntese do pensamento do espanhol Jesus Martín-Barbero, que mudou-se para a Colômbia em 1963 e, desde 2000, vive no México. Formado em filosofia, Martín-Barbero mergulhou nos estudos da linguagem em busca de explicação para a cena, comum em nossas cidades, de casebres em ruas de barro, onde falta o esgoto, que já existia na Roma de César, mas não antena de TV sobre o teto de zinco. Deixando de lado o preconceito elitista da direita e a racionalização esquemática da esquerda, Martín-Barbero buscou demonstrar que os meios de comunicação de massa, como o cinema, o rádio, a música e a imprensa, tiveram papel tão decisivo quanto o populismo na formação da nacionalidade latino-americana. Para ele, o sucesso do cinema mexicano não decorre só da competência de seus realizadores, mas do fato de seus espectadores se reconhecerem diante da tela grande. O crescimento das tiragens dos jornais populares e sensacionalistas tem muito a ver com a preservação do melodrama com que seus leitores se identificaram. O êxito da música negra brasileira, que escapou do gueto dos morros e terreiros para conquistar o asfalto, é outro exemplo da mediação que, segundo ele, altera o sentido dos produtos culturais de massa. No final do século XX, quando a hegemonia norte-americana disseminou seu estilo de vida pelo planeta afora, Martín-Barbero, ainda enxerga rastro dos dominados no protagonismo das mulheres como esposas e mães, no grafite dos muros, na mescla de rock e ritmos tradicionais que agitam a juventude de nossas periferias. Nesse cenário, a massificação televisiva continua a ser modificada pelo fato de ser assistida em família e de preservarem outro meio, o melodrama, que fez o sucesso do romance de cavalaria e da literatura de cordel. Em resumo, o popular para Martín-Barbero, não é algo externo ao massivo, mas sobrevive dentro dele. Na sociedade de massas, são massivos o sistema de educação, as formas de representação e participação política, os modelos de consumo e até a religião. Nessa sociedade, o popular se esgueira pelas brechas da mídia e, em determinados momentos, explode nas ruas e na telinha, como na grande celebração que marcou a agonia e a morte do presidente Tancredo Neves.
Paulo Markun: Para entrevistar o professor Jesus Martín-Barbero, nós convidamos Daniel Piza, editor-executivo e colunista do jornal O Estado de S. Paulo; Laio Leal, jornalista, sociólogo, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e integrante da Ong TV; Maria Immacolata Vassalo de Lopes, professora da ECA-USP, presidente da comissão de pós-graduação da Escola da Universidade de São Paulo e autora do livro Vivendo com a telenovela; Sílvia Borelli, professora de pós-graduação em ciências sociais da PUC (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), que também coordena pesquisas e escreve sobre o tema mídia e cultura e é também autora do livro Vivendo com a telenovela; Lauro César Muniz, dramaturgo e roteirista; Eugênio Bucci, crítico de televisão e colunista do jornal Folha de S. Paulo e do Jornal do Brasil e também professor da faculdade Cásper Líbero; Roseli Fígaro, jornalista, professora da Escola de Comunicação e Artes da USP e editora da revista Comunicação e Educação, da ECA, autora do livro Comunicação e trabalho e Gabriel Priolli, diretor da TV PUC de São Paulo, crítico de TV da revista Época e presidente da Associação Brasileira de Televisão Universitária. O Roda Viva é transmitido em rede nacional, para todos os estados brasileiros e também para Brasília. Infelizmente, hoje, ele não permite a participação do telespectador, porque o programa está sendo gravado. Boa noite, professor.
Jesus Martín-Barbero: Boa noite.
Paulo Markun: Eu queria começar pelo final do seu livro. Esse livro Dos meios às mediações, em que o senhor menciona uma cena em que os brasileiros mais velhos, digamos assim, que já passam dos 15 anos, 17 anos, lembram muito bem, que foi a morte do presidente Tancredo Neves, e a grande comoção nacional que tomou conta das ruas de São Paulo e levou 4 milhões de pessoas às ruas. E o senhor cita esse exemplo como um exemplo justamente dessa interferência ou dessa penetração do popular nas brechas da televisão eletrônica. Gostaria que o senhor explicasse melhor, o que o senhor quis dizer com isso?
Jesus Martín-Barbero: De alguma maneira, os meios de comunicação abordaram a doença terminal de Tancredo Neves como um acontecimento nacional, mas o interessante é que, enquanto a mídia escrita simulava uma certa objetividade com relação ao que acontecia, tanto na vida de Tancredo Neves quanto ao redor dele, a televisão preferiu ver isso explorando a sensibilidade, a emoção, o sofrimento e a tensão que viviam as massas populares. Para mim foi revelador. As duas matrizes culturais que trabalhei em todo o livro, a matriz ilustrada, que de alguma maneira pretende distanciar-se para ensinar ao povo o que ele deve saber, porque o povo não sabe o que quer saber nem o que precisa saber, levando um pouco a um extremo de oposição com a maneira como a TV se envolve com essas dimensões emocionais, com essas dimensões sentimentais, com essas dimensões não controláveis pela razão, mas que não são irracionais, porque fazem parte da constituição do ser humano. Pareceu-me que, naquele momento, a televisão permitia uma aproximação bem mais profunda do que significava Tancredo Neves para o povo do que aquela matéria médica, que em termos científicos e técnicos explicava como estava o corpo de Tancredo Neves. O que interessava ao povo era a saúde de Tancredo, mas essa saúde não era apenas seu corpo. Essa mistura era que me interessava, como uma espécie de fato, ao mesmo tempo político e simbólico, essas duas grandes maneiras de abordar a relação do povo com a mídia e também a relação do povo com a vida política do país.
Paulo Markun: O senhor acha que esse tipo de situação perdura hoje em dia, 17 anos depois, quando os meios de comunicação estão cada vez mais globalizados, quando a fórmula única cada vez mais parece determinante? Isso continua a existir na televisão, por exemplo?
Jesus Martín-Barbero: Está sofrendo transformações. Há uma tendência à uniformidade. O marketing pretende racionalizar as variáveis para controlar as reações do público, mas eu acho que isso está empobrecendo a capacidade mediadora dos meios de comunicação e não tenho certeza de que isso esteja gerando um negócio maior. Eu continuo defendendo, com um conceito brasileiro, que a mídia tem brechas. Ainda que tentem racionalizar, em termos de marketing, a influência sobre as pessoas, o que elas vêem na TV, o que elas pensam a partir do que vêem na TV ou o que escutam na rádio ou o que lêem nos jornais, tudo isso nunca será controlado. Não que não haja certos níveis de controle. Há, sim, mas o controle nunca será na mesma medida em que os comerciantes acham que controlam. Eles precisam criar nas pessoas a sensação de que são compreendidas e estão satisfeitas, mas, na verdade, a sociedade mostra que as pessoas vivem desconcertadas, que não são compreendidas nem muito menos satisfeitas, senão a situação seria outra. Com a mídia poderosa do Brasil, a mídia poderosa da Colômbia, esses países não teriam conflitos sociais, não teriam rebeldia, não teriam desespero, porque a mídia fala o tempo todo de uma falsa satisfação, esperança, tranqüilidade, estabilidade. O que nossos países vivem é a falta total de estabilidade e de esperança. Quero dizer que esse controle aumentou com a globalização, mas isso não pode ser analisado, simplesmente, indicando que na vida das pessoas o mesmo aconteça. Então, o comércio finge, lembrando uma velha frase que diz que os professores fingem que ensinam e os alunos fingem que aprendem. Acho que existe isso na relação da mídia com as pessoas.
Roseli Fígaro: Professor, pelo que eu compreendi dos seus escritos sobre os cenários das grandes cidades, o senhor disse que as cidades não são mais lugares de encontro, mas lugares de fluxo de automóveis, de redes de informações. Seriam, então, os meios de comunicação, especificamente a televisão, esse novo espaço público?
Jesus Martín-Barbero: Não devemos levar ao extremo a perda da cidade como lugar de encontro. A cidade continua tendo lugares de encontro. Eu diria que a diferença de classe social é importante. Setores populares se encontram ainda nas praças dos bairros, dançam, fazem festas, têm muitas formas de contato. No mundo latino-americano o espaço público é importante. A coletividade conta. Não podemos nos deixar levar pelo que se escreve nos EUA. A solidão do indivíduo nos EUA é diferente da nossa solidão. São maneiras diferentes de estar só. Nós também estamos sós, mas de outra maneira. Estamos sós, mas em meio à multidão, convivendo com as pessoas. Então, a cidade não desapareceu como lugar de encontro. Nas classes médias e altas isso acontece muito menos. Vivemos em conjunto e não sabemos o nome do vizinho que mora no mesmo andar, na porta ao lado, mas isso é outro problema. Eu acho que de alguma forma a mídia substitui e, com o tempo, chega a constituir um novo espaço de encontro. Quando milhões de brasileiros estão vendo a mesma novela, estão formando uma espécie de comunidade. Isso é um fato. É uma comunidade emocional, uma comunidade de intriga, uma comunidade de desafios, de problemas, de formas de ver essas novelas. Uma comunidade plural. O texto da novela que está sendo vista é uniforme. O que não é uniforme é o modo como as pessoas o vêem, mas há uma certa comunidade, de forma que... Falei muitas vezes que, depois de estudar tanto a novela, aprendi com a minha pesquisa que as pessoas se divertem muito mais com a novela quando vão contá-la do que quando vão vê-la. Isso é fundamental, porque assim entendemos que esse espaço público da mídia, especialmente da televisão, é um espaço público não apenas quando assume esse papel, quando faz debates políticos nas eleições ou quando há grandes debates. Não! É como a TV estabelece a agenda e como estabelece os temas a partir dos quais as pessoas se relacionam. Então, não é exatamente a mídia que é o espaço público, mas essa comunidade que se forma por meio da mídia e que leva as pessoas, ao se encontrarem, a falar da mesma coisa, protestar contra a mesma coisa e ficar com medo da mesma coisa. Por exemplo, estamos convencidos de que a mídia multiplica por 10 a insegurança real das cidades. A sensação é que o problema é 10 vezes mais grave. Nesse sentido, é um espaço público em que as pessoas tanto se liberam quanto aumentam seu fardo.
Lalo Leal: Professor, eu me lembro que, na década de 1980, a teoria das brechas, nós discutimos muito isso aqui no Brasil. Era um momento, para parte da América Latina, o Brasil principalmente, um momento de esperança na redemocratização do país. Acho que tudo isso tinha a ver com aquele momento político. Hoje, passado todo esse tempo, o senhor acredita que essas brechas e mesmo as mediações diante da alta concentração do meio de comunicação, cada vez mais... E no caso brasileiro há uma particularidade, dado o poder específico da televisão em relação aos outros meios. Hoje, a televisão está praticamente em todos os domicílios brasileiros, enquanto a tiragem dos jornais de áreas não chega a 5 milhões, a TV por assinatura não passou dos 3,5 milhões. Então, o poder dessa televisão, ela não estreitou muito essas brechas? E, hoje, essa concentração não impede um pouco essa idéia de uma melhor elaboração dessas mediações ao que o senhor se refere?
Jesus Martín-Barbero: Sim. Estou convencido de que os espaços de desvio, de alternativa, de experimentação, de contradição são menores. Estou totalmente de acordo. Mas, ao mesmo tempo, a vida social cria novas formas de dissidência, a começar pelo que antigamente já se chamava de desafeição, quando as pessoas acompanham o ritual político, mas sem acreditar. Há uma forma exterior de acompanhamento do que a mídia proclama, mas, na verdade, muita gente não está sentindo aquilo como seu. Quero dizer o seguinte: por parte da indústria da mídia há, sem dúvida, uma concentração que jamais imaginamos conseguir. O que houve no Chile, no final dos anos 1970, era brincadeira de criança perto do que temos hoje. A concentração que Rupert Murdoch [empresário australiano naturalizado norte-americano, principal acionista e dirigente da News Corporation, multinacional baseada em Nova Iorque, um verdadeiro império midiático que engloba diversos veículos na Austrália, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos] conseguiu ou o Grupo Bertelsmann [maior grupo europeu na área de multimídias] na Alemanha. São todas as mídias juntas. Os empresários da mídia escrita, que rejeitavam a TV, hoje, não rejeitam nada. Não há rejeição entre uma mídia e outra, entre uma indústria cultural e outra. Cada vez mais elas se fundem transversalmente numa lógica de comercialização segundo a qual tudo custa cada vez menos e rende cada vez mais. Essa é a pura verdade. Mas aquela idéia das brechas não estava ligada apenas, se é que entendi bem a teoria brasileira, com o que acontecia dentro da mídia, mas com o que as pessoas procuravam e queriam, com as expectativas. O Brasil, hoje, vive um momento extraordinariamente aberto. Eu diria que o fato de ter chegado aonde chegou, não só de ter vencido Lula [presidente Luiz Inácio Lula da Silva], mas de o PT ter chegado, para mim, como estrangeiro, a esse nível de prefeituras e governos, a presença no Congresso... Isso tudo significa que aquelas brechas continuam abertas, em parte, porque as pessoas continuam se sentindo mobilizadas por uma necessidade vital de mudança. É muito menos ideológico do que era naquela época. Havia uma mediação ideológica maior do que hoje. Hoje, conta a vida cotidiana das pessoas. Se o partido sabe traduzir, por um lado, para os empresários, para a dona de casa, por outro, e para os jovens, por outro, é porque, de alguma maneira, sua relação com o que diz a mídia não é linear, não é uniforme. E as brechas existem, mas com outras formas. Por parte da indústria há, sem dúvida, um fechamento, mas, por parte da sociedade, há uma abertura com modalidades muito diferentes de antes.
Maria Immacolata V. de Lopes: Professor, pegando, então, esta linha, eu queria trazer para a sua contribuição aos estudos, principalmente de comunicação na América Latina, baseado exatamente nesse novo aporte, que é complexificar. Quer dizer, um pensamento muito mais complexo, seja daquilo que a gente fala do ângulo da produção, como do ângulo da recepção. Parece que nós, envolvidos em comunicação de alguma maneira, temos até dificuldade de vermos que se trata de lógicas diferentes, mesmo dentro desse processo extremamente duro de concentração. O que significa que essas empresas ou esses grupos tenham que lidar com um mundo cada vez mais fragmentado, diversificado, com novos nomadismos. Quer dizer, todas essas migrações, reconstruções de identidades jovens, a questão da nação, a questão de geração, a questão de gênero. Então, quer dizer, isso tudo parece que, num ambiente atual, quer dizer, explode de tal maneira que impede que a gente realmente aborde isso de uma maneira redutivista. Então, gostaria que o senhor falasse um pouco de seu trabalho na América Latina, explorando um pouco mais essa questão das brechas, mas, principalmente, das mediações do mundo, da vida, que é propriamente aonde os estudos de recepção... em que você foi, efetivamente, quer dizer, um grande incentivador, inauguração desses novos olhares, como a gente diz, dessas novas mudanças de perguntas e de posturas diante de objetos de estudos da área de comunicação. E isso não apenas de estudos teóricos, não, porque estarão presentes na sala de aula, na formação dos comunicadores, que depois irão para jornais, para televisão... que nós estamos falando. Quer dizer, nós não podemos abstrair que é esta televisão também. Gostaria que o senhor falasse um pouco.
Jesus Martín-Barbero: Acho que isso tem relação com a pergunta anterior nesse sentido. Ouvindo você agora, eu pensei em uma coisa. A vida dos indivíduos do ocidente está se tornando muito mais complexa, na medida em que as grandes instituições da modernidade, a política, o trabalho e a escola, estão vivendo crises profundas. A política, não é preciso mudar muito. O trabalho, a mudança das condições de trabalho, a tendência à desaparição do período integral para a vida toda, os trabalhos por projetos, por tempo limitado, essa precariedade do trabalho de milhões de pessoas, essa remodelação do modelo empresarial, que já não existe, para que se faça carreira na empresa, o que suporia toda uma vida, a maneira como o sistema educacional em geral desconectou-se, a meu ver, profundamente, das transformações que afetam o mundo da linguagem e do texto. Assim como o mundo do trabalho, tudo isso faz com que os indivíduos e os jovens, cada vez mais cedo, tenham de assumir uma série de decisões que tornam suas vidas muito mais complexas, muito mais ambíguas. A família os protegia até muito tarde, na verdade. Hoje em dia, outra coisa, muitos jovens desempregados têm de ficar em casa. Esse é outro problema. Sei de uma pequena história de Richard Sennett [sociólogo norte-americano (1943- ) cujo trabalho está voltado para os estudos sobre a interação da política com a sociologia]. Diante do discurso direitista sobre a recuperação da família, um discurso conservador perante as mudanças na relação entre pais e filhos, na relação entre os cônjuges etc, ele cria uma imagem bonita e nada conservadora: “Acontece que a família é o único lugar onde resta um pouco de coração neste mundo sem coração.” Ele escreveu isso. Em um mundo de lógicas tão brutais, esse é o único lugar onde resta coração. Mas quero dizer o seguinte: o que está acontecendo para que a mídia uniformize ao mesmo tempo em que fragmenta? Sabemos bem como a mídia, a seu modo, foi a primeira a ver essa fragmentação social e começou, pelos jornais, revistas e rádios, a diversificar as propostas de programação para jovens, para adultos, para populações rurais, para populações urbanas, a distinguir idades, gerações que vinham do rock, de outras que não gostavam de rock e preferiam a música local, como uma reserva expressiva. Essa fragmentação é simplista. Ela não leva em conta que essa ruptura dentro da sociedade vem acompanhada de um aumento de incertezas, de desconcertos, uma série de tensões muito fortes. A escola não nos preparou para viver com incerteza. Era preciso superá-la com a ajuda da mãe ou do pai, alguém que nos livrasse do medo e da insegurança. O que choca é que, enquanto a maioria dos cidadãos vive essa situação muito complexa que vivem os adolescentes cujos pais não se amam, se divorciam, cujo pai perdeu o emprego... mesmo assim a mídia cria uma imagem da juventude como se não houvesse problemas, como se fossem apenas consumidores. É uma invenção de consumidores. A juventude vive hoje uma problemática de contradições que a converte em um desafio crescente para a sociedade, que não entende o que acontece no mundo dos jovens. Nesse sentido, o que choca é que entender a sociedade por meio da mídia, apenas por meio da mídia, ou seja, estudando sua estrutura econômica, sua concentração, suas alianças secretas com o mundo da política ou dos políticos, o fato de negociar cada vez mais poder, não nos permite entender que a complexidade se produz nos modos de vida e que há um afastamento cada vez mais profundo entre essa complexidade e o simplismo, a frivolidade, os estereótipos da mídia, sobretudo da televisão.
Paulo Markun: Professor, nós vamos fazer um rápido intervalo, voltamos daqui instantes.
[intervalo]
Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando Jesus Martín-Barbero, um dos mais influentes pesquisadores de comunicação de massa na América Latina. O programa não permite a participação do telespectador porque está sendo gravado. Sílvia Borelli.
Sílvia Borelli: Professor Jesus Martín-Barbero, o senhor tem, em seu último trabalho publicado no Brasil, Os exercícios do ver, e para a gente retomar um pouco essa discussão da força, da presença, da imagem televisiva no cotidiano das pessoas... o senhor tem colocado lá que as imagens televisivas, publicitárias, enfim, as imagens midiáticas, têm servido como referência para aquilo que o senhor denomina uma segunda oralidade. Ou seja, o senhor está levantando a hipótese de que há um enorme segmento populacional no mundo inteiro que passa da oralidade, da narrativa, da relação, da fala entre as pessoas, passa diretamente para relação com as imagens sem nunca ter dominado aquilo que é a presença hegemônica da escrita, dessa cultura ilustrada a que o senhor agora há pouco fez referência. Eu estou colocando isso porque acho muito importante que a gente pense em que imagens televisivas estamos falando. Nós temos uma televisão comercial que vai trabalhar no espaço do tripé, funcionalidade, documental ou em variedades. E temos um forte debate, acho que principalmente nesse momento eleitoral em que vivemos no Brasil, que passa muito por essa coisa: de que imagens televisivas estamos falando? Ou: que papel a televisão teria nesse processo educacional da oralidade, da imagem, da escrita, no contexto... quer dizer, estamos falando de uma televisão educacional, estamos falando de uma TV comercial, como é que fica esta questão?
Jesus Martín-Barbero: Evidentemente. Hoje, não se pode dizer "a" televisão. Por um lado, pode-se dizer que as maiorias têm, como oferta televisiva, a televisão comercial e algumas poucas redes de televisão pública ou independente. Na América Latina, há casos como o da TV Cultura ou o do Canal 22, do México, mas não é comum que essas redes tenham uma presença forte no país. Depois temos toda a TV paga: cabo, satélite direto, antena caseira. Nesse campo houve um aumento porque, junto com isso, no caso da Colômbia, existem várias televisões locais piratas que cada vez têm mais vida comunitária. Na Colômbia, há diversas televisões locais, inclusive de bairros, nas grandes cidades, que estão fazendo uma mistura explosiva do regional mais localizado e captando por satélite o que quiserem. Em termos capitalistas, estão roubando. Não sei... em outros termos, estão aproveitando o que o mundo oferece. Não estou defendendo a pirataria, mas sou contra alguns governos que liberalizam, desregulamentam tudo para o privado e enchem de regulamentações o que é pequeno e comunitário. Isso é ser radicalmente incoerente. Como podem os governos permitirem que os grandes canais façam o que quiserem em nossos países? Que se associem com as empresas que quiserem sem nenhuma regulamentação? No entanto, os canais locais, de bairros, que procuram tecer novamente a sociedade, criar participação dos cidadãos, são regidos por regras que proíbem a veiculação de noticiários e publicidade local. É um absurdo. Estou falando dessa televisão que se espalhou e tem uma multiplicidade de versões. E estou falando de televisão apenas nesse sentido que se mencionou no começo. Na América Latina, as maiorias nunca passaram pela cultura do livro. Passaram pela tarefa escolar de ler para fazer uma prova, mas não pela cultura do livro. Há uma particularidade latino-americana muito forte, que agora se prolonga ao mundo extraordinário que começa a ser explorado, que é a internet. A oralidade entrando por meio dos sites, por meio do correio eletrônico, pela maneira como adolescentes fazem páginas na web para se comunicar com gente do mundo inteiro. A filha de uma colega minha, em Guadalajara, México, fez uma página e se comunica com japoneses, australianos... Ela tem 14 anos e escreve em um idioma que não é inglês, não é espanhol, não é oral, não é escrito, tem imagens e tem sua música. O que é isso?
Lauro César Muniz: A globalização é que fez essa alteração profunda, não é? Nós tínhamos um mundo anterior à década de 1990, à queda do Muro de Berlim, que era um mundo sombrio, que até tinha uma ficção, 1984, que esperava uma palavra de ordem que impusesse tudo. Temíamos essa coisa fascista, essa coisa colocada com verdades absolutas. Então, o neoliberalismo, essa globalização, é que é... de certa forma, criou esta ambigüidade, esta multiplicidade de visão e de percepção e de possibilidades dos meios de comunicação e até da abertura dessas brechas, da abertura das massas, para um livre pensar. Eu faço telenovelas há muitos anos e eu sinto a diferença de ter feito telenovela na década de 1970, 1980 e fazer hoje. Naquele momento, sob uma ditadura rígida, uma ditadura pesada, nós nos propúnhamos a ter palavras de ordem e até, de certa forma, alertar a grande massa de telespectador sobre o que estava acontecendo. Hoje não, hoje isso é impossível. A única forma da comunicação, hoje, me parece que é jogar uma ambigüidade, jogar contradições para evitar, justamente... para propiciar ao telespectador a dualidade de visão, o equilíbrio das proposições, evitando as palavras de ordem. Parece-me que a globalização, se eu entendi bem a sua colocação, a globalização, a internet, o aumento das possibilidades de comunicação, provocaram essas brechas, essas possibilidades de diversidade na recepção, não é? E como fica Cuba nesse contexto?
Jesus Martín-Barbero: Acho que a globalização já mostrou que não é um único processo. Há um que é dominante. É o que acontece no âmbito financeiro. Não é econômico, é financeiro em particular. Toda a especulação que levou ao que vimos nos EUA, o desfalque de certas empresas, fingindo uma contabilidade virtual totalmente diferente da realidade... A globalização é a articulação de muitos processos em direções muito diferentes. Toda a visão puramente maniqueísta, globalização x antiglobalização, não considera esse conjunto de processos contraditórios que, como já se colocou claramente, chocam-se entre si e se articulam. Claro, mas também criando contradições fortes. A partir dessa imagem de uma globalização que também contém, além do neoliberalismo que impera, além da visão radicalmente uniformizada e barateadora dos conteúdos, uma explosão de iniciativas a que chamamos imaginação social. Hoje, existe uma imaginação social enorme que não está sendo articulada. Nesse sentido é preciso diferenciar, por um lado, o que a globalização tem de conexão e desconexão. Ninguém vai negar que tem, em nossos países, ainda hoje, esse desenvolvimento em termos de tecnologia, de computação, de informática e de internet que está mudando a divisão social, mas não pela tecnologia. Ela está mudando porque as nossas sociedades estão, primeiro, muito piores que nos anos 1960, em termos de desenvolvimento nacional, e com níveis de população abaixo do nível de pobreza muito maior do que nos anos 1960. Numa sociedade dividida, esse tipo de globalização amplia a divisão, aprofunda a divisão social. Não podemos ocultar isso, como não podemos ocultar as transformações culturais que vêm acontecendo na sociedade humana. Dá no mesmo. Nesse sentido, queria dizer uma coisa sobre Cuba. Estive lá há mais de um ano e saí chorando. Chorando. Pensando em tudo o que significou Cuba, toda a esperança da nossa revolução, da nossa transformação social na América Latina. Encontrei um país cujo governo não soube se localizar minimamente nessa nova complexidade. Existe a Cuba dos turistas, que esbanja, como em qualquer lugar, e uma população que vive níveis de miséria, sinceramente, de tristeza profunda.
Gabriel Priolli: Eu queria que o senhor explorasse um pouco a questão de regulação, regulamentação, que acho que um grande problema dos meios, particularmente na época da globalização, é a discussão sobre como controlar essa força enorme que eles têm, particularmente a televisão. Há no seu trabalho uma perspectiva muito importante que o senhor afirma. Quer dizer, a força do cidadão comum, essas mediações que o senhor diz que a sociedade faz em relação aquilo que vem dos meios. Normalmente, a percepção popular em relação aos meios de comunicação é diferente, as pessoas ainda têm, particularmente no Brasil, aquela visão do Grande Satã, do Big Brother, dos meios de comunicação capazes de formar mentalidades, dirigir a vida das pessoas, determinar o processo político e tal. Agora... que há enormes mediações nisso e a sociedade é muito mais forte do que essa idéia de que os meios são o Grande Satã. No entanto, por que essa sociedade que consegue elaborar, metabolizar aquilo que vem dos meios de comunicação? Por que é que ela não consegue produzir uma regulação eficiente dos meios? Por que ela não consegue fazer com que essa insatisfação que ela tem em relação à mídia se transforme em pressão política efetiva no sentido de se impor limites legais, limites étnicos e, enfim, formas de controle social, que sejam democráticas e eficazes sobre os meios de comunicação?
Jesus Martín-Barbero: Por um lado, acho que isso tem muito a ver com a crise da política. Com a crise do político, não só da política. A crise daquele sistema de representação, que continuo achando importante, mas que foi se retirando, foi se afastando das transformações que foram surgindo nas demandas sociais. Por outro lado, essa fragmentação da sociedade em que vivemos, com todo o crescimento de ONGs, de movimentos sociais, ecologistas, feministas, étnicos, locais, regionais, territoriais, acho que isso tem a ver com uma mudança profunda. Isso que os modernos viram como aquilo que ficaria no lugar de Deus: a sociedade. É esse o conceito. A sociedade, ela já não remete ao mundo externo, passa a compreender-se a partir de dentro e a operar a partir daí. Tanto em termos que incluem o Estado, quanto em termos de sociedade e Estado, entendendo sua separação. Nesse sentido, acho que vivemos um momento de transformações muito profundas, que não conseguimos entender. Nesse momento, acho que nossas categorias de ciências sociais têm muita dificuldade para entender, por exemplo, o que o chileno Norbert Lechner chamou de cidadanização da política. Foi o que fez com que Joaquin Lavín [candidato à presidência do Chile] quase alcançasse Ricardo Lagos [presidente do Chile entre 2000 e 2006] na presidência do Chile e ganhasse, com sobra, a prefeitura de Santiago. E o que faz Lavín? Diante do discurso da concentração, em particular do Partido Socialista, que era um discurso ainda muito apegado à retórica da ideologia... A ideologia não funciona hoje como funcionava há 30 anos. E Lagos sabe disso. O Partido Socialista também sabia. No entanto, conservou-se uma certa retórica. Os cartazes de campanha tinham uma terminologia abstrata, que não tem a ver com a vida das pessoas. Lavin começou a falar dos problemas de saúde, de educação e de segurança, temas fundamentais. Um tema fundamental que ainda não entendemos é por que a esquerda continua achando que os únicos que têm medo são os ricos, se hoje os pobres têm tanto medo ou mais que os ricos. Não apenas na Colômbia. Vi isso no México. A insegurança urbana nas cidades médias e grandes não é um tema dos ricos, que se cercam de muros, de câmeras de TV e de cães. Não! Nos bairros populares existe medo. Há gangues de jovens que aterrorizam as pessoas. Eu quero dizer que há mudanças na sociedade, em sua maneira de se unir, de se aglutinar. Estou cansado de dizer publicamente aos colombianos que a culpa de termos uma comissão nacional de televisão, que é a perversão do que quis criar a nova Constituição colombiana, é nossa. Deixamos o Congresso seqüestrar essa comissão para nomear os seus intermediários, os "politiqueiros" dos empresários. É culpa da sociedade civil, porque permitimos que seqüestrassem uma idéia magnífica da nova Constituição colombiana, que era criar uma comissão de TV no mesmo nível da Comissão do Banco da República e com salários iguais. Mas se a comissão do banco tem os melhores economistas, na de televisão ninguém sabe nada de TV. São "politiqueiros" e negociantes. Não é gente que entende de TV, que sabe fazer TV, que sabe pensar a TV. Essa gente não está lá. Eu culpo o povo, mas quero dizer que o fato de hoje esses movimentos não serem capazes de se aglutinar reflete a falta de um partido político capaz de catalisar essas energias, mas também o fato de os grupos, os movimentos, essa diversificação da sociedade que emerge diante da visão de povo versus ricos, patrões versus proletariados... A ruptura com esse maniqueísmo e essa diversidade que emerge... as mulheres, por um lado, os jovens, os negros, isso tudo rompe com a idéia moderna ilustrada de sociedade. É outra sociedade. Temos a idéia do cidadão que está acima das diferenças. Hoje, o cidadão deve lidar com as diferenças. Isso muda muito o modo de fazer política. É um problema sério de compreensão.
Daniel Piza: O senhor, no início do livro Os exercícios do ver, reclama dos intelectuais latino-americanos que têm uma visão da TV como uma coisa nociva ou, por outro lado, diria, como ponto de partida para devaneios teóricos... e se fala pouco, se vê pouco a TV tal como ela é. Então, eu gostaria de saber por que existe esse preconceito do intelectual latino-americano quanto à televisão? E o que o senhor como intelectual latino-americano vê na televisão?
Jesus Martín-Barbero: O fenômeno não é latino-americano. De Sartori [Giovanni Sartori é um cientista político especializado no estudo da política comparada. Sua obra mais destacada é Teoria da democracia] a Popper [Karl Popper, filósofo social e político, grande defensor da democracia liberal e um oponente do totalitarismo], para falar de dois grandes, abominam a televisão. Para eles a televisão é terrível. O que eu questiono aí é que, na verdade, há uma falta de compreensão de que a TV é duas coisas diferentes. Ela é um aparelho, em termos de poder, em termos físicos, um aparelho, um dispositivo, de acordo com Foucault [Michel Foucault (1926-1984), autor de Microfísica do poder, entre outros livros, intelectual francês que teve no exercício do poder em suas diversas manifestações, inclusive no discurso, um recorrente objeto de estudo], capaz de moldar os gostos populares, as expectativas em função de lógicas completamente exteriores às dinâmicas culturais das pessoas. Ao mesmo tempo, o que eu defendo é que a TV foi o dispositivo que possibilitou, como nunca, expressar dinâmicas culturais populares, expressivas, gestuais, cenográficas, dramáticas, como nunca antes. Os meios da cultura negaram, de imediato, que ali houvesse cultura. Não que a televisão busque a cultura popular. Eles a desconhecem em sua imensa maioria. No entanto, acham que o sucesso que alcançam não tem a ver com as culturas populares que eles usam em termos de comédia, de melodrama e inclusive de reality shows. Quero dizer que a TV é uma mídia muito contraditória. Por um lado, é a mídia que legitima a entrada da oralidade latino-americana, que já havia sido alterada pelo rádio e pelo cinema. Essa oralidade entra na TV e o que me interessa é a cumplicidade entre uma oralidade visual, como é a latino-americana, em que o mundo iconográfico, na cultura pré-colombiana e durante a época das colônias, foi enorme. A plástica do barroco latino-americano é estupenda. E era popular. No México, no século XVIII, os jesuítas fizeram capelas nas aldeias. É uma transformação do que vinha da Europa. As capelas têm cabeças de anjos dos quadros de Murillo [Bartolomé Esteban Perez Murillo (1618-1682), pintor do barroco espanhol], mas os rostos são de índios. É uma transformação radical. De certa forma, é isso que a televisão faz. A televisão é essa contradição. De um lado, é regulada por fórmulas cada vez mais rígidas, que destroem a capacidade de arriscar e experimentar, mas por outro lado, continua sendo o ponto de conexão dessa oralidade secundária com a nova visualidade tecnológica, que cada vez mais é a visibilidade política e cultural. Então, para mim, é preciso denunciar como a lógica mercantil vem destruindo a criatividade dos que fazem roteiros, dos que trabalham com dramatização, com iluminação, com fotografia. Toda a criatividade está sendo limitada por lógicas puramente mercantis. E há a cumplicidade do sistema político, para continuar presente por meio da desregulamentação que lhes permite fazer pactos por debaixo da mesa e continuar compondo um poder acima das demandas da maioria, mas é preciso entender que as pessoas não são idiotas. Na América Latina, há uma espécie de revanche histórica, que começou com o cinema. Depois veio a televisão. É o lugar onde eles se vêem. Quero contar uma história. Uma pesquisadora chilena, que trabalhou com habitantes de bairros populares, fez uma pesquisa sobre como as mulheres de áreas operárias viam a publicidade. Ela descobriu uma coisa extraordinária. As mulheres disseram: “Somos excluídas da publicidade. Somos desconhecidas! Os traços da mulher chilena não aparecem. Sempre aparecem traços da branca rica. Nós aparecemos em propaganda de sabão ou de produtos de cozinha. Mas não nos reconhecemos.” Mas como, não se reconhecem? “Não nos reconhecemos, mas também nos reconhecemos. Porque temos direito de ser bonitas, temos direito de despertar desejo em nossos maridos. A publicidade nos faz lembrar, todos os dias, que também somos mulheres, com direito à beleza, com direito a ser atraentes, com direito a várias comodidades ligadas, sobretudo, à dimensão feminina. Então, a publicidade não é tão mentirosa. Quem não nos vê é a sociedade. É ela que não nos deixa sonhar, e não a televisão. Se nos deixassem sonhar, teríamos mais força para lutar.” Então, a publicidade era contraditória para elas, negando-as por um lado, mas incitando-as por outro, fazendo-as pensar em direitos e expectativas de crescer no sentido físico e espiritual. É essa contradição que eu vejo na TV e que os intelectuais latino-americanos não se arriscam a ver. Sabe por quê? Porque com isso teriam de aceitar que aquilo em que se apóia boa parte de sua autoridade foi destruído, acabou-se. Não quero substituir os intelectuais por certos personagens da mídia que são nefastos do ponto de vista cultural e político, mas no fundo eles invejam o novo poder que esses personagens têm e, quando podem, não desprezam a presença de uma câmera.
Paulo Markun: Nós vamos fazer mais um rápido intervalo e voltamos a falar de televisão e outros meios.
[intervalo]
Paulo Markun: Estamos de volta com o Roda Viva, esta noite entrevistando o filósofo e comunicólogo espanhol, Jesus Martín-Barbero, professor e pesquisador das relações entre cultura e comunicação. O programa não permite a participação do telespectador porque está sendo gravado. Professor, o livro Dos meios às mediações, que o senhor está lançando a segunda edição agora aqui no Brasil, ele menciona alguns momentos da cultura de massas como partes importantes da formação da identidade latino-americana: o cinema mexicano, o rádio argentino, a imprensa popular em vários países, a música no Brasil, entre outros veículos de comunicação. Eu queria apenas mencionar esse aspecto da música que, hoje, vive no Brasil um momento muito diferente. Um momento em que a gente tem uma clara distinção novamente entre o que é a música do povo, a música das periferias, das favelas, e a música da chamada elite, ou da chamada "sociedade". E, ao mesmo tempo, aquela situação em que o samba conquistou o asfalto, saindo lá dos terreiros e das favelas para de alguma forma virar alguma coisa palatável e aceitável. Confronta com uma série de outras manifestações que já não têm mais a ver, necessariamente, com a identidade automática, nem com o folclore, se a gente pensar no hip hop, no rap, em várias manifestações. E há uma mistura tremenda de ritmos e de formas musicais que embaralham a situação. O senhor acha, ainda, que a música tem essa função de demarcação do nacional, da categoria das pessoas se identificarem através dela?
Jesus Martín-Barbero: Vejamos. Acho que a música continua tendo um papel, faz uma certa demarcação do nacional, mas ela vive uma transformação de seu estatuto social. Não apenas cultural, social. Até a geração do final dos anos 1960, a música nunca teve a capacidade de ser a expressão dos jovens, o idioma com que se comunicam de um lado a outro do mundo, como aconteceu a partir dos Beatles. Eu diria que, nesse sentido, o rock foi o ritmo pioneiro da crise da relação entre o popular e o nacional. Surgiu um popular, como disse Renato Ortiz [antropólogo e sociólogo, professor da Unicamp], internacional. Um popular transnacional. Não se pode negar a grande penetração que os Beatles e outros grupos deram ao rock como elemento de expressividade corporal, às vezes também política. Foi o caso do rock argentino em plena ditadura, tendo de lutar contra essa ditadura, mas metendo-se nas brechas e sabendo contar, em sua mistura com o tango e outros ritmos argentinos, esse novo país que de alguma maneira queria sobreviver ao massacre da ditadura. O rock fazia a memória dos desaparecidos. Quando vejo um rock que se mistura com ritmos nacionais para lembrar os desaparecidos, estou diante de uma nova relação entre o popular, o nacional e a música. Isso já não pode ser pensado em termos apenas nostálgicos. O importante não é o volume da mistura, mas se é uma mistura fecunda ou estéril, se possibilita criar ou se castra. Essa é a pergunta fundamental.
Eugênio Bucci: Professor, eu tenho duas perguntas para lhe fazer. A primeira, talvez pareça um pouco pessoal, mas efetivamente não é. Nós estamos aqui conversando, em parte, sobre a necessidade de que os intelectuais olhem para televisão e eles, efetivamente, não olham muitas vezes, porque, para olhar, precisam se dar conta de que perderam o lugar da sua autoridade, que é o que Pierre Bourdieu fala sobre a televisão e que muitos vêm se dando conta. Ele mesmo, Bourdieu, sentiu a necessidade de falar sobre a televisão. Ora, essa condição, e já vi isso em manifestações suas, em livros ou entrevistas, de um intelectual falar sobre a televisão nos remete àquela outra condição... o intelectual quando fala de qualquer coisa está falando de si mesmo, ninguém estuda aquilo diante do que não cultiva alguma afetividade. Eu queria te perguntar, a minha primeira pergunta é essa: do que é que o senhor gosta na televisão, o que é que há na televisão que, quando está na tela, te dá alguma forma de prazer, o que te diverte, o que há de vivo na televisão para o telespectador Jesus Martín-Barbero? A segunda pergunta... eu gostaria de voltar, depois, sobre o problema da identidade nacional ou latino-americana, se é que isso existe, e o papel político que pode ser jogado por governos e entidades. Mas antes eu tinha uma enorme curiosidade que o senhor respondesse o que é o telespectador Jesus Martín-Barbero... em que ele se diverte?
Jesus Martín-Barbero: Vou dizer primeiro o que me desagrada, o que me deixa entediado e me faz ver cada vez menos televisão. Realmente, tanto na Colômbia quanto no México, em geral a televisão é cada vez mais igual, mais pobre. Mas uma coisa me atrai e tem muito a ver com o que Beatriz Sarlo [(1942- ), escritora e professora de literatura argentina] descobriu, entre aspas. Sem o zapping, a televisão estava incompleta. A televisão se tornou televisão com a multiplicidade de canais e com o controle remoto. Então, eu sinto que a televisão me permite uma experiência de hipertextualidade, uma experiência de fragmentação urbana. Com o zapping, a televisão é a mídia que expressa melhor a experiência urbana que tenho hoje. A cidade decomposta, estranhada, na qual cada um vai lendo seu texto, mas vai lendo vários textos ao mesmo tempo. Não é linear. Eles se cruzam. Estava no início da modernidade o que Walter Benjamin soube ler na poesia de Baudelaire, essas novas formas de estar só em meio à multidão. Eu diria que a televisão é isso. Eu tenho a sensação de estar me movendo. E me divirto muito mais que minha esposa. É um problema. Eu me divirto muito [risos]. Fazemos pactos para que ela também assuma o controle, porque eu vejo a mobilidade dela. É um pouco de etnografia caseira. Eu mudo muito de canal. Posso estar vendo um filme, um jogo de futebol e também um concerto. Posso fazer as três coisas ao mesmo tempo. Agora que estou começando a navegar pela internet, percebo que ela é a enésima potência do que a televisão permite. Demorei para chegar a isso, fui muito lento. Meus filhos e minha esposa chegaram bem antes, mas agora o prazer para mim é essa espécie de intertextualidade, de romper relatos e armar, coser relatos diferentes, de gêneros diferentes. É uma experiência nova. A segunda pergunta coloca o tema de fundo desta Roda Viva. O tema é: como é possível que, tendo apenas dois idiomas... A Europa tem 18, são 18 idiomas. São mais línguas que países [risos] e em cada país ela é diferente. Como é possível que não esteja circulando? Os ministros da Cultura se reúnem três vezes por ano e os da Educação cinco. Eles não conseguem fazer circular o melhor da televisão.
Gabriel Priolli: A televisão não está sobre o controle da educação e nem da cultura, professor. Esse é o problema. Está sobre o controle da propaganda, da engenharia, das telecomunicações, esse é o problema.
Jesus Martín-Barbero: Em quase todos os países há pequenas quotas para programas universitários, inclusive em canais públicos, em canais privados etc. Ou há televisões públicas, como na Colômbia, que tem um canal nacional, tem canais nas grandes regiões, por zonas, na Costa Atlântica, no sul, Santander. Cada um tem seu canal público. Como é possível que esses canais passem apenas novelas e não transmitam séries históricas, grandes debates, grandes documentários, que são trabalhos profundos sobre aspectos da cultura de nossos países? Não entendo.
Eugênio Bucci: Porque, no Brasil, o telespectador talvez estranhe esse seu argumento, porque a TV pública no Brasil não passa telenovela.
Jesus Martín-Barbero: Esse é outro problema.
Eugênio Bucci: Ela exibe documentários e debates, como este aqui. Aliás, é uma das raridades.
Jesus Martín-Barbero: É um contraponto, porque outros canais passam novelas. Eu entendo. Além das novelas existem as minisséries, que são muito mais experimentais, tanto na temática ligada à realidade, quanto no ponto de vista da linguagem televisiva. Existe também o tema do cinema que cabe aqui. O cinema já não funciona sem a indústria da televisão. A maioria dos filmes feitos na Europa tem apoio das televisões. Como é possível que se produzam no espaço ibero-americano, Espanha e Portugal, até 180 filmes por ano e, em dois anos, tenham circulado apenas seis filmes controlados pela distribuidora americana? Eles escolheram quais? Foram apenas seis e escolhidos por eles. Como é possível que não haja, nos nossos países, capacidade para associar? Existem muitas distribuidoras independentes que nos permitem ver parte desse outro cinema. Com as televisões públicas, ou independentes, ou os espaços que os canais privados às vezes cedem, como é possível que os governos não consigam que o cinema latino-americano seja visto ao menos na TV?
Paulo Markun: Em parte, talvez, porque os ministros e os governos pensam a televisão como não sendo parte da cultura.
Jesus Martín-Barbero: Exatamente. Esse é problema. A política cultural, e nisso quero ser enfático, porque estou envolvido, trabalhando na OEI [Organização de Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura], com todas essas instituições, em política cultural... Nos últimos anos, tenho atuado mais na política cultural do que no meio acadêmico. E o que se vê é isto: as políticas culturais são pensadas com base na cidade letrada. O mundo visual não conta. Estive em Paris, na assembléia do BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento], há três anos. Quando o BID começou a perceber, primeiro, que a cultura é um espaço de geração de empregos muito importante na América Latina; segundo, que boa parte do fracasso dos investimentos em educação deve-se ao fato de ignorar a cultura... Eles pensavam na educação técnica e ignoravam as culturas das comunidades. Eles perceberam isso e começaram a pesquisar o papel da cultura na economia nacional. Nos EUA, hoje, a exportação cultural é a maior de todas. Nem os carros, nem os tecidos, nada. Nem sequer as armas. O que dá mais dinheiro aos EUA tem a ver com TV, com cinema, com programas etc. Tem a ver com turismo, com cultura. Então, se começa a estudar a economia da cultura e isso vai trazendo mudanças, mas nossos governos... O Mercosul colocou as indústrias culturais em anexos, não estão no tratado. Os governos não entendem a importância econômica nem a importância cultural da mídia.
Paulo Markun: Eu queria lembrar, e fazendo propaganda justa da TV Cultura, que a TV Cultura acaba de assinar um importante convênio com o Canal 22, no México, justamente para iniciar esse tipo de intercâmbio, mas o senhor tem a absoluta razão quando menciona que essa é a regra geral.
Jesus Martín-Barbero: Às vezes é a incapacidade dos governos. Não há sequer interesses econômicos. A novela latino-americana superou as séries americanas. Em cinco anos os horários mudaram. Mudaram. Os programas americanos passavam depois das 20h. Então, vieram novelas latino-americanas e nacionais. As mais vistas nesse horário são as nacionais. No Peru, no Chile. É muito interessante. O tema local interessa em meio à globalização. Então eu penso: como queremos construir a América Latina? Não uma só identidade, porque é muito plural, mas como queremos construir? Precisamos de um mercado audiovisual próprio, claro. Não é contra os empresários. Nada de grandes legislações como nos anos 1970. Não! Precisamos de uma política diferente. Uma política para negociar com os empresários, para abrir sua cabeça, porque às vezes são tapados e só pensam no imediato. A Fox acaba de mudar a legislação. Dizem que são apenas regulamentações das redes de televisão numa negociação secreta com os empresários de TV e rádio quando, há um ano e meio, a secretaria de governo tinha sete comissões estudando uma nova lei no lugar de outra, que vinha também da década de 1960. A Fox fez uma negociação por baixo da mesa contra toda a sociedade, mas isso não se justifica apenas economicamente. Trata-se também de subordinação política.
Maria Immacolata: Posso colocar uma questão interessante? Que está acontecendo na União Européia? Talvez, assim, até mostrar, nessa linha que você estava dizendo, que há muitas ambivalências, contradições e tensões... Ora, lá essa situação não se coloca, de dificuldade, principalmente, estou falando de ficção, de circular entre os diversos países. Entretanto, essas narrativas não circulam. Isto é, parece que no momento, que cada um desses países, eles querem ver o nacional, entendem? Coisas alemãs não entram na Itália. Da Itália não entra na Inglaterra etc. Não é uma coisa muito interessante?
Jesus Martín-Barbero: Não há dúvida que, diante da globalização, em certas horas o público quer o regional. O local significa que, no caso espanhol, onde haja canais regionais, o local é mais local ainda. Em Medellín [na Colômbia] as pessoas vêem o canal de Medellín. Não o nacional, o de Medellín. Isso está muito claro. Acho que, por um lado, há um problema de idiomas na Europa, que torna muito mais caro o intercâmbio de programação. A dublagem para cinema está muito desenvolvida, mas não para televisão. Depois, a maioria dos países tem quotas de filmes. Há um mínimo de filmes europeus que devem passar na televisão. Estamos falando de televisão. Não sei por que a América Latina não usa quotas. Pode soar terrível, mas isso precisa ser negociado, porque os melhores programas do People and Arts e do Discovery Channel, eu vi que o governo francês investiu enormemente para passá-los em seus canais e para oferecê-los às escolas, para constar nas bibliotecas. Eu li no Le Monde. E não eram tão caros. As pessoas poderiam ver o melhor da TV mundial se nossos governos quisessem. Esses programas poderiam ser comprados e poderiam ser transmitidos. Assinar TV a cabo custa muito para a maioria, mas alguns desses programas, sobre história e geografia, que facilitam o entendimento do mundo de hoje, poderiam passar nos canais locais.
Lalo Leal: Basta coragem e vontade política.
Jesus Martín-Barbero: Exatamente.
Paulo Markun: Professor Jesus Martín-Barbero, muito obrigado pela sua entrevista, foi uma esclarecedora conversa sobre as questões pertinentes aos meios de comunicação. E nós aqui continuaremos no Roda Viva, sempre às segundas-feiras à noite, debatendo e discutindo essas e outras questões no espaço da televisão pública que é a TV Cultura. Uma boa noite a todos. Eu agradeço a participação dos entrevistadores. Uma ótima semana e até segunda."
Fonte:Texto reproduzido do site Memóroa Roda Viva -Fapesp